Professor Victor Machado Gil Presidente da Sociedade Portuguesa de Cardiologia

Dança com vírus

05/03/2020

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Dança com vírus

03/05/2020 | Opinião | 2 comments

Em poucos meses, um novo vírus surgido na remota China, atravessa as severas medidas de contenção impostas de imediato no novo país do Sol nascente e espalha-se numa dimensão pandémica atingindo, na data em que escrevo estas notas (fim de Abril de 2020), mais de três milhões de pessoas, com mais de 200.000 mortos em 210 países de todos os continentes. O mundo já viveu outras pandemias e na memória coletiva permanece o fantasma da gripe espanhola, que prolongou a devastação da Grande Guerra de forma ainda mais mortífera, atingindo 500 milhões de pessoas (1/3 da humanidade nessa época) calculando-se em pelo menos 50 milhões as vítimas mortais. Só nos Estados Unidos, ocorreram 650.000 mortes. Para se ter uma ideia da dimensão do horror, os mortos na Grande Guerra foram 9 milhões entre militares e 7 milhões de civis. Apesar de uma aparente acalmia quer nos países asiáticos onde se iniciou o surto, quer já nos países europeus mais afetados e mesmo nos EU, ninguém consegue prever o que se irá passar, se a tendência será para uma diminuição gradual, se haverá um recrudescimento, se se descobrirão tratamentos eficazes (decorrem muitos ensaios clínicos, mas os poucos dados conhecidos até agora são pouco promissores), se a sazonalidade existe para esta infeção, se uma vacina eficaz terminará o surto, se a imunosenescência privará os mais vulneráveis da proteção dessa vacina. As rigorosas medidas de confinamento impostas pelos vários governos conduziram a uma paralisação da economia com graves consequências imediatas já visíveis que incluem a fome em países classificados como desenvolvidos e consequências a prazo de uma dimensão imprevisível.
O mundo, e em especial o mundo abastado, confortável, protegido pelo estado social ou por poderosas seguradoras, o mundo civilizado que reduziu em poucas décadas a mortalidade cardiovascular, que é cada vez mais eficaz no cancro, que usa as tecnologias mais sofisticadas, que cria poderosas inteligências artificiais amplificadoras da inteligência humana, que possui os mais destemidos biocientistas, o mundo vertiginoso, barulhento, inquieto, o mundo das poderosas bombas atómicas e dos drones letais, mostra-se incapaz de reagir ao ataque de um minúsculo organismo que mede apenas 70 a 90 nm (bilionésimo do metro) e percebe que a única defesa eficaz é o isolamento social. De repente, o afastamento social, o encerramento ou suspensão de empresas, serviços, instituições, desde fábricas de automóveis a cabeleireiros e equipas de futebol, o recolhimento domiciliário fortemente aconselhado a grupos de risco, o teletrabalho, os despedimentos, os layoffs, questiona status, modelos e seguranças. De repente, percebemos que afinal somos todos contingentes e frágeis e que a vida humana, não poucas vezes discutida com a vulgaridade da ignorância, é afinal o maior de todos os bens, não um dado adquirido ou fruto duma decisão pessoal, mas um bem sagrado de que não somos donos mas administradores.
Entretanto, o deserto em que se transformou a vida à nossa volta, tem sido afinal habitado pela eflorescência de valores que julgávamos esquecidos. As manifestações de solidariedade graciosa, de entrega pessoal com dádiva da própria vida, impulsionada por mais nada que o sentido de servir, e a consciência de que não nos salvamos sozinhos, mas que é na cidade e com os outros que encontramos caminho, acordaram uma humanidade que afinal estava lá, mas provavelmente abafada pelo ruído, a velocidade e a ânsia. O afastamento dos familiares e dos amigos fez-nos valorizar porventura mais a família e a amizade. A privação do convívio, do acesso à arte e à cultura, o condicionamento da liberdade, fez-nos valorizar o que antes banalizávamos por considerar bens adquiridos, com blindagem impenetrável.
Os sistemas de saúde, confrontados com o cataclismo, focaram-se numa primeira fase em procurar responder aos infetados com o SARS CoV-2, suspendendo a atividade clínica não urgente e reforçando no limite do possível as estruturas a todos os níveis, criando corredores e espaços protegidos. Progressivamente, a par duma certa estabilização das curvas epidemiológicas, têm-se reinventado circuitos, modelos organizativos, administração de recursos que permitam responder às solicitações clínicas, convivendo de forma protegida com a pandemia. Do confinamento das pessoas e diminuição (ou ausência) de resposta dos serviços, resultou um retraimento enorme com consequente diminuição em grande escala da procura de serviços urgência e de marcação de exames diagnósticos e consultas médicas.
Todos sabemos que no passado havia um excesso de procura do sistema de saúde, motivado por insegurança, por ansiedade mas também por uma lógica consumista alimentada pela ideia de que, mais que um serviço à comunidade, a saúde é um direito que se tem que utilizar (os doentes foram rebatizados de “utentes”). Mas é também verdade que em situações como a insuficiência cardíaca e o cancro se correm sérios riscos de descer subitamente degraus na sua evolução, apenas por privação de um acompanhamento crónico adequado. Além disso, o atraso diagnóstico vai confrontar-nos, no degelo clínico, com formas mais graves e de mais difíceis equilíbrios.
No entanto, na experiência agora vivida, nas soluções encontradas, no incremento de meios alternativos de que são exemplo as tele-consultas, encontramos vias a desenvolver no futuro e, não passando a uma “dança com vírus” como Kostner na “dança com lobos” teremos que ponderar alguns aspetos desta nova “cultura pandémica” que poderão enformar o futuro.
Diz-se que nada ficará como dantes, mas a memória dos homens é curta e a história contradiz a esperança de mais justiça e equidade. Os tempos que se seguiram à Grande Guerra e à gripe espanhola, não foram de reorganização da vida e dos modelos de sociedade no sentido do progresso, da paz e da felicidade, mas entraram numa euforia boémia e — que acabaram por conduzir profundas crises abraçadas pelos diversos “ismos” que dominaram a europa e se espalharam mundo fora com reminiscências ainda atuais. E de uma Grande Guerra, que se julgava a última, acabou por se cair numa nova Guerra Mundial.
Talvez, desta vez, os erros do passado sejam tomados em conta e que se olhe para tanta futilidade, redundância, desperdício, disfunção organizativa, consumismo desregrado e se parta, desta vez, para um mundo melhor.

No meio destas incertezas vem à memória a célebre gravura de Dürer – Ritter, Tod und Teufel- e nela a atitude resoluta, o olhar firme do cavaleiro, que segue o seu caminho calcando a morte ante a perfídia do diabo, é a que nos inspira como profissionais de saúde, como líderes e como cidadãos. Certamente que é essa imagem alegórica que inspira também os empresários, as autoridades, os trabalhadores, os agentes de cultura. Diz-se que a gravura invoca o Salmo 23 (Salmos 23:4 “Ainda que atravesse vales tenebrosos, de nenhum mal terei medo porque Tu estás comigo. A tua vara e o teu cajado dão-me confiança”) mas precisamos mais que a confiança cega na vara e no cajado: temos que contar connosco e sobretudo temos que contar com os outros.

2 Comments

  1. Francisco Machado

    Brilhante,genial e humano,como sempre,caro Victor.

    Forte abraço amigo

  2. Maria Helena Morgado Canada

    Victor Gil, fizeste uma ótima reflexão.
    Acreditamos no que há de melhor no ser humano e que o trigo cresça mais que o joio.
    Abraço
    Helena Canada

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