O nosso aparelho digestivo é o território de fronteira de excelência entre aquilo que é o nosso “eu interior” biológico e aquilo que vem de fora, essencialmente os alimentos

06/01/2020
Entrevista Professor Guilherme Macedo, Presidente Eleito da Organização Mundial de Gastrenterologia

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O nosso aparelho digestivo é o território de fronteira de excelência entre aquilo que é o nosso “eu interior” biológico e aquilo que vem de fora, essencialmente os alimentos

O nosso aparelho digestivo é o território de fronteira de excelência entre aquilo que é o nosso “eu interior” biológico e aquilo que vem de fora, essencialmente os alimentos

Desfrutar de bem-estar digestivo é fundamental para a nossa saúde. Sabemos que uma “boa” Saúde Digestiva” evita doenças graves como o cancro do estômago, intestino ou pâncreas. Ou até doenças mais comuns, menos mortais, que afetam milhares de portugueses, como a obstipação ou refluxo. Aproximadamente 1/3 da população apresenta sintomas relacionados com a saúde do sistema digestivo, como a flatulência, sensação de distensão e desconforto/dor abdominal, náuseas, vómitos, obstipação, diarreia, incontinência ou intolerâncias alimentares. A maioria destes sintomas ocorre na ausência de alterações estruturais do sistema digestivo, mas podem afetar negativamente a qualidade de vida do indivíduo. No mês em que se assinala o Mês Mundial da Saúde Digestiva, fomos falar com o Professor presidente eleito da Organização Mundial de Gastrenterologia, Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia e diretor do Serviço de Gastrenterologia do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto.

Sobre a iniciativa Mês da Saúde Digestiva, que este ano tem a primeira edição, e também sobre o tema do microbioma. Como é que surge esta ideia do Mês da Saúde Digestiva. Quem são os seus mentores?
O Mês da Saúde Digestiva surgiu na sequência de uma efeméride que é consagrada todos os anos ao dia Mundial da Saúde Digestiva que se assinala no dia 29 de maio, pela Organização Mundial de Gastrenterologia (OMG). O que nós pensamos em Portugal até pela nossa ligação direta à OMG, foi de que seria muito importante para os portugueses que, usando como rampa de lançamento uma efeméride Mundial da Saúde Digestiva se encontrasse um mês para celebração no qual houvesse uma grande difusão de conhecimentos relacionados com a promoção da saúde digestiva em Portugal. Essa promoção tem a ver com a convicção de que é fundamental dotar os portugueses com informação relevante sobre como promover o estilo de vida saudável.
Em tudo isto sobressai o facto de que não é só na área da saúde digestiva que a alimentação é um território nobre, mas também que há muitos outros aspetos relacionados com a saúde digestiva, como a patologia de vários órgãos, igualmente relevantes para a sua concretização.

Nós temos no nosso aparelho digestivo órgãos cuja importância para o nosso equilibro e para a nossa saúde são fundamentais… Falamos de um conjunto de órgãos que se revestem de uma importância crescente, não só pelo relevo que tem a sua inflamação, mas também em termos de patologia oncológica a que estão associados (esófago, estomago, intestino delgado, cólon, reto, fígado e pâncreas), e que têm um impacto direto e elevado no sistema de saúde e sobretudo na qualidade de vida dos portugueses.

É claro que os portugueses não gostam de se sentir com enfartamento, com digestões difíceis, com azia e, sobretudo, não gostam de saber que, sem determinadas precauções, há um risco progressivamente maior de cancro de cólon, reto, pâncreas, fígado e do estômago…

Esta simbiose entre a necessidade de informar e, sobretudo, de precaver; de gerar mecanismos de prevenção, principalmente pela adoção de um estilo de vida saudável parece-nos que é um óptimo pretexto para que durante um mês haja uma preocupação centrada na saúde digestiva.

Há uma ideia quando se fala da saúde digestiva… vem-nos à cabeça as doenças do foro digestivo mais frequentes com maior prevalência e incidência.
O nosso aparelho digestivo é o território de fronteira de excelência entre aquilo que é o nosso “eu interior” biológico e aquilo que vem de fora, essencialmente os alimentos, os nutrientes e os líquidos que ingerimos. Portanto, tudo aquilo que passa no aparelho digestivo acaba por ter uma repercussão muito grande no que somos. Provavelmente tem um bocadinho a ver com o aforismo popular “diz-me o que comes, dir-te-ei quem és”… é uma noção popular muito importante de ver como aquilo que é um mecanismo externo acaba por nos influenciar.

Ora, o veículo dessa influência é o aparelho digestivo e, portanto, há aqui um conjunto muito grande de ideias, umas verdadeiras e outras mitos, relacionadas com a saúde digestiva que importa clarificar, desmistificar, ou ressalvar… Repito: a ideia da saúde digestiva, como uma entidade fundamental para o nosso equilíbrio biológico, é algo que tem impacto muito grande na nossa qualidade de vida. Isso verifica-se em circunstâncias tão triviais como o bem-estar do nosso dia-a-dia, com a qualidade do sono, com a nossa capacidade de mantermos a atenção, a nossa capacidade cognitiva… Ao contrário, sabemos que as perturbações da esfera cognitiva e emocional têm, também, um impacto muito grande na saúde digestiva, o que significa que há uma “ligação umbilical” entre aspetos neurológicos, psicológicos e até comportamentais com a saúde digestiva. Essa grande perceção entre este equilíbrio permanente entre aquilo que se passa no nosso “eu interior”, que tem muito a ver com a saúde digestiva, e o nosso “eu exterior”, que tem a ver como nós comunicamos e exprimimos as nossas emoções, é muito importante que compreendêssemos que essa ligação  existe de facto. E é por isso que se fala muitas vezes no sistema nervoso do intestino; no eixo fígado/intestino/cérebro tal como é designado, porque há claramente uma ligação intrínseca entre estas estruturas.

Existem alguns dados conhecidos sobre a prevalência das doenças do foro digestivo em Portugal?
Sim, existe muito conhecimento… e agora que andamos todos muito afetados por uma cadência permanente de números e fatalidades que são transmitidos na televisão, por outras razões, estamos cientes que esses números existem e é bom que não sejam relativizados.

Na realidade, nós temos completa noção de que, pelo menos uma vez na vida, um português vai querer procurar um gastroenterologista (especialista de doenças do aparelho digestivo). De facto, mais de um terço dos portugueses já o fez, o que significa que já tem a perceção de que é preciso tratar da saúde digestiva… E não é só tratar quando surge o problema, é antecipar os problemas. É neste sentido que estamos muito empenhados nos programas de prevenção de doenças como o cancro do cólon, do estomago ou do fígado porque são condições que afetam muitos milhares de portugueses.

 Que estão muito associados ao estilo de vida e à alimentação…
E também a outros hábitos. Por exemplo quando se fala do cancro de fígado e nas consequências da Hepatite C é evidente que não estamos a falar de alimentação, mas de outros hábitos e comportamentos que foram tidos no passado, mas há outros que ainda estão presentes e que também afetam severamente a qualidade digestiva, como o consumo excessivo de álcool. O sistema digestivo é um grande palco onde tudo se vai desenrolar. Os órgãos que fazem parte do sistema digestivo têm uma importância muito grande em termos oncológicos. Os chamados “Big Five” (esófago, estômago, pâncreas, fígado, cólon e reto são os principais responsáveis pela mortalidade oncológica à escala global.

Agora estamos todos muito condicionados pela pandemia de Covid 19, mas esta pandemia vem somar-se a outras já existentes, como a pandemia da Hepatite C (que tal como o Covid 19 é provocada por um vírus) … E uma outra, que está a aumentar a olhos vistos que é a pandemia da obesidade, que também tem muito a ver com a saúde digestiva. Portanto, há uma necessidade muito grande de uma compreensão por parte do público das muitas oportunidades e do muito que pode fazer para melhorar a sua saúde digestiva.

Uma questão que é inevitável nestes tempos… de alguma forma o esforço dos meios para o combate à pandemia impediu um acompanhamento mais atento dos doentes com problemas digestivos?
Já todos reconhecemos que houve um impacto significativo, pelo menos durante dois meses, na redução da nossa disponibilidade para fazer uma serie de procedimentos da área diagnostica-terapêutica porque estávamos focados, por uma decisão nacional, no controlo da pandemia da Covid-19. Isso aconteceu e é fácil de compreender…Se as estruturas de saúde do país realizavam cerca de 1.000 colonoscopias por dia, é evidente que, se houve uma suspensão quase integral destes procedimentos durante dois meses, isto impactou severamente nessa capacidade de diagnóstico. O que agora nos interessa resgatar é o período de tempo em que de facto fomos obrigados a ter estas atitudes para a defesa de toda a gente.

Está na hora de “reabrir”
Acreditamos que este é o momento de reintroduzir nos nossos circuitos habituais todos esses procedimentos habituais diagnostico-terapêuticos.

As pessoas estão preparadas para este regresso a uma possível normalidade?
Um dos grandes desafios que temos pela frente é o de restaurar a confiança e a segurança das pessoas para que venham, de novo realizar os nossos procedimentos endoscópicos (diagnósticos e terapêuticos). Embora tenha havido uma quebra abrupta de atividade nesta área provocada pela pandemia por Covid 19, a verdade é que já tínhamos graves limitações na nossa capacidade de responder às solicitações que já eram crescentes na área digestiva. A pandemia só veio “destapar” algumas insuficiências em “agudo” que todo o sistema tinha, já as conseguimos suprir, mas agora temos as insuficiências em “crónico” que temos de ser capazes de ultrapassar.

O tema do Mês da Saúde Digestiva é o Microbioma. Porquê?
Primeiro é preciso fazer compreender o que é isto de microbioma. A OMG selecionou o assunto por reconhecer ser um dos aspetos centrais e que mais condiciona a saúde digestiva.

E o que é o Microbioma?
É uma comunidade enorme, um universo de microrganismos (bactérias, vírus, fungos) que habitam no nosso organismo, em particular no nosso intestino.

 E em número superior ao das células humanas…
Com certeza, são vários triliões de organismos que colonizam os diferentes setores do tubo digestivo. Há segmentos do aparelho digestivo que têm bastante mais desta “população”, sobretudo o cólon, mas também em vários outros segmentos há uma “população” microbiana riquíssima, com milhões de genes.

Refira-se que o genoma humano tem 23 mil genes. Quando nos referimos ao Microbioma estamos a falar de milhares de milhões de genes que nós temos no aparelho digestivo; uma galáxia que vive dentro de nós e que é capaz de condicionar vários dos processos digestivos que são essenciais à nossa vida. Eu diria que, permanentemente, o nosso microbioma intestinal tem influência direta naquilo que somos capazes de comer, de lidarmos com a medicação que ingerimos, na forma de lidarmos com o ambiente (quem vive na cidade tem um microbioma diferente de quem vive no campo). O microbioma tem muito a ver com o estilo de vida. Uma pessoa sedentária tem um microbioma diferente do de uma pessoa que faz exercício físico regular. Portanto voltamos à tal conversa inicial, já que há uma enorme associação entre o meio externo e o meio interno. Naquele famoso território de fronteira existe a tal população microbiana que de alguma forma condiciona tudo aquilo que passa para dentro de nós e que condiciona a nossa capacidade de defesa. A nossa imunidade está muito dependente daquilo que é o nosso microbioma.

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