Lúcio Meneses de Almeida Presidente da Associação Portuguesa de Infeção Hospitalar Médico Assistente Graduado de Saúde Pública

PREPARAÇÃO E RESPOSTA A CATÁSTROFES: A PROPÓSITO DE UM RELATO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19

06/15/2020

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PREPARAÇÃO E RESPOSTA A CATÁSTROFES: A PROPÓSITO DE UM RELATO NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19

15/06/2020 | Opinião | 0 comments

 

“In a pandemic, patient-centered care is inadequate and must be replaced by community-centered care. Solutions for Covid-19 are required for the entire population, not only for hospitals. The catastrophe unfolding in wealthy Lombardy could happen anywhere.”

Nacoti M, Ciocca A, Giupponi A, Brambillasca P, Lussana F, Pisano M, Goisis G et al. At the epicenter of the Covid-19 pandemic and humanitarian crises in Italy: changing perspectives on preparation and mitigation. NEJM Catalyst Innovations in Care Delivery 21 March 2020

 

As pandemias são as mais catastróficas de todas as catástrofes. Impactam populações inteiras e traduzem-se, em muitos casos, por verdadeiras crises humanitárias. Afetam muitos indivíduos, ao mesmo tempo e durante muito tempo, com as inevitáveis implicações na capacidade de resposta dos sistemas de saúde.

A pandemia pelo SARS-CoV-2 (COVID-19) levou, em muitos países, à rotura da rede de serviços de saúde. Tornou, por outro lado, aparente o conflito entre a proteção da saúde (“health protection”) e a proteção da economia (“economy protection”).

A insuficiência do modelo prevalente de cuidados de base clínico-individual é um dos ensinamentos que podemos retirar da pandemia de COVID-19. Independentemente da sua perspetiva, mais ou menos integradora, o objeto de intervenção (indivíduo) condiciona, de forma decisiva, a efetividade da resposta a acontecimentos com uma escala populacional.

Médicos hospitalares italianos, no “epicentro” da pandemia (Bergamo, março), fazem um apelo dramático ao recentramento dos sistemas de saúde do indivíduo (“patient-centered”) para a comunidade (“community-centered”) (Nacoti et al, 2020). Preconizam, explicitamente, o reforço de meios humanos na área da Saúde Pública, como forma de lidar, no futuro, com um tipo de ameaças que não se compadece com uma preparação episódica ou de curto prazo.

Ao fim de escassos meses de progressão da pandemia de COVID-19 constata-se, assim, a imprescindibilidade da preparação em saúde pública (“public health preparedness and response”). Preparação enfocada em ameaças cada vez mais frequentes, duradouras e intensas.

Os fenómenos meteorológicos extremos, com as ondas de calor, são disso um preocupante exemplo. Obrigam, no nosso País e desde 2004, a um esforço de preparação de contingência, hospitalar e dos restantes níveis de cuidados de saúde, e têm nos cuidados continuados e nas estruturas de apoio a idosos settings da maior relevância epidemiológica.

Num sistema de saúde funcional, todas as peças se articulam de forma concertada. Não há entropias nem hipertrofias, antes um “remar” no mesmo sentido e com a mesma cadência.

Mas, para que isso aconteça, a capacidade (meios e recursos) individualmente afeta aos remadores tem que ser a necessária. Na ausência do cumprimento deste pressuposto o desempenho da embarcação (totalidade do sistema) é, inevitavelmente, prejudicado.

Os serviços responsáveis pela proteção da saúde de todos (serviços de saúde pública) encontram-se acantonados, a nível local, na rede de cuidados primários. O seu posicionamento, nesta rede de serviços, é idêntico ao das restantes unidades funcionais, não obstante o seu âmbito populacional de intervenção.

Acresce que a sua localização atual não propicia a indispensável equidistância sistémica, relativamente aos diversos níveis de cuidados e, muito em particular, aos cuidados hospitalares.

Mas a própria rede hospitalar tem que virar a página quanto ao seu paradigma organizacional e de cuidados. Sem prejuízo do papel regulador das ARS, muitos hospitais comportam-se como sistemas fechados, tendencialmente entrópicos.

Os serviços de epidemiologia e saúde pública hospitalar (“serviços de investigação, epidemiologia clínica e saúde pública hospitalar”), previstos num diploma legal nunca cumprido (despacho nº 7216/2015, de 24 de junho), tinham como missão “colaborar na prestação de cuidados de saúde hospitalares e na articulação entre as atividades hospitalares e a de outros prestadores de saúde e agentes da comunidade, visando a obtenção de ganhos em saúde das populações”.

Contemplavam, desta forma, uma inovadora abordagem epidemiológica hospitalar, enfocada no planeamento de base populacional, reforçando a capacidade de intervenção hospitalar na área da qualidade e segurança dos cuidados (incluindo, por consequência, o controlo da infeção). Previam, especificamente, a “preparação dos hospitais para situações de emergência ou de contingência, como sejam epidemias, situações de catástrofe ou outras ameaças de saúde pública”.

A pandemia de COVID-19 abalou a confiança da Humanidade na sua capacidade de resposta a ameaças globais em saúde. Restaurar a confiança implica, antes de mais, reforçar a resposta sistémica, ajustando os modelos organizacionais e de cuidados às novas – e cada vez mais imprevisíveis – ameaças à saúde das populações.

Tal implica um “rasgar” de fronteiras, por parte dos hospitais individuais e da rede hospitalar, ajustando-os a uma realidade demográfica e epidemiológica em permanente mudança.

Mas nada acontecerá sem um reforço, inequívoco e sustentado, do financiamento do SNS – prevenindo-se, em simultâneo, tropismos de circunstância, assentes em modelos organizacionais alegadamente inovadores mas exclusivos no seu acesso e, consequentemente, sistemicamente disfuncionais.

 

Referências bibliográficas:

Nacoti M, Ciocca A, Giupponi A, Brambillasca P, Lussana F, Pisano M, Goisis G et al. At the epicenter of the Covid-19 pandemic and humanitarian crises in Italy: changing perspectives on preparation and mitigation. NEJM Catalyst Innovations in Care Delivery 2020. Disponível em https://catalyst.nejm.org/doi/full/10.1056/CAT.20.0080 (acedido em 2020/06/14)

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