Na origem das “Valsas Portuguesas” estão escondidas histórias da pesca do bacalhau

23 de Agosto 2020

Num livro infantil que liga a Terra Nova a Portugal, o escritor Richard Simas conta “O Mistério das Valsas Portuguesas” no feminino, depois de ter encontrado as dimensões escondidas da pesca portuguesa do bacalhau na Terra Nova.

O livro “The Mistery of the Portuguese Waltzes” (“O Mistério das Valsas Portuguesas”, em tradução livre) chegará em breve às livrarias portuguesas, pela mão da editora bracarense Poética Edições, num lançamento adiado devido à pandemia de covid-19.

“As Valsas Portuguesas” é uma canção popularizada por Art Stoyles, um acordeonista de São João da Terra Nova, no Canadá, que a incluiu num álbum que contava com outros cinco temas portugueses.

As outras cinco canções “soam exatamente a canções de folclore português”, conta Richard Simas. “A sexta é ‘As Valsas Portuguesas’, e não soa nada como uma canção portuguesa”, completa o autor.

Simas chegou a Portugal, com escala em São João, na Terra Nova (Canadá), em busca da origem deste registo, depois de encontrar uma pista na dedicatória, endereçada a um capitão Manuel da Silva.

O que encontrou acabou por desviá-lo do intuito inicial de escrever um ensaio, “porque tem de ser baseado em factos”, e esses não foram fáceis de apurar.

Os familiares do único capitão chamado Manuel da Silva que os registos mostram que terá rumado à Terra Nova na altura em que Art Stoyles diz ter aprendido a música confirmam que este “era musical”, mas “descreveram-no como um homem muito reservado, que nem em Ílhavo saía para tocar com bandas”, explica o autor.

“Depois há o Art Stoyles, que era uma pessoa muito particular. Ele era, provavelmente, bipolar, era disléxico, não sabia ler nem escrever. […] Os portugueses achavam-no fantástico e ele aprendeu algumas canções portuguesas que eu consigo identificar”, conta Simas.

Mas, em relação às “Valsas Portuguesas”, o escritor admite ter ouvido explicações, gravadas, de Art Stoyles, sobre como as aprendeu, que são “uma total ficção, é impossível”.

Incapaz de provar uma ligação inequívoca entre o tema e Portugal, ou o capitão português a quem é dedicada, foi numa noite de insónia em Amesterdão que percebeu que a história iria ser contada num conto infantil.

Na cabeça, tinha uma “primeira versão genérica de um rapaz de São João, que vê os pescadores, um dia conhece um marinheiro português que lhe ensina uma canção que acabaria por se tornar famosa em São João”.

A história mudou de rumo quando, depois de entrevistar um violinista de referência na cultura ‘folk’ de Terra Nova, este sugeriu a Simas que ouvisse a sua filha a tocar as valsas.

A jovem música tinha aprendido o tema com o próprio Art Stoyles, que vivia no mesmo lar de idosos que a avó.

“Ela sai, tem cerca de 11 anos, estava um bocadinho nervosa, talvez estivesse a fazer aquilo pelo pai, não sei bem, e começa a tocar e a coisa não corre muito bem. O pai dela começa a tocar com ela e ela lá consegue acabar a canção”, narra o autor.

Terminada a interação, apercebeu-se do que lhe faltava: “uma rapariga”.

Interessou-lhe “o pânico dela, o medo de não tocar muito bem e a relação dela com o pai”.

“A história era a mesma, mas, de repente, temas universais como a morte, estar preocupada com a morte da avó dela, aproximar-se do Art Stoyles quando ele estava a morrer, acaba por dar toda uma outra textura à história que não estava lá”, concretiza.

Mas também a presença de uma mulher permite chegar a outra dimensão, já que, nas histórias de pescadores, “eles vão embora e as mulheres têm de cuidar de tudo, manter tudo em ordem”.

“Há muitos fantasmas nestas histórias de pescadores e muitos desses fantasmas são as mulheres que ficam para trás”, prossegue.

Richard Simas começou a pesquisa junto do Museu Marítimo de Ílhavo, mas cedo percebeu que “há uma narrativa muito diferente que sai de Ílhavo e de Aveiro”, porque dali saem as histórias dos “construtores, os donos e os capitães”.

O olhar sobre os “heróis do mar” deixa de fora o “discurso vindo dos pescadores”.

A outra versão da história, encontrou-a em sítios como Vila Praia de Âncora ou Vila do Conde, ao longo da costa nortenha.

“Com eles [os pescadores], era uma experiência dura e violenta. Viram amigos a morrer no mar, congelados. Essas histórias não estão muito presentes nos filmes, livros, ou outras representações”, explica.

Esses homens, que partiam da costa norte de Portugal para a Terra Nova na pesca do bacalhau, “hoje estão parados numa esplanada, a olhar para o mar, mas se vem alguém falar na Terra Nova, quase que choram”, conta.

“Foi, para muitos deles, a experiência mais importante das suas vidas. Muitos deles não vinham de famílias piscatórias, mas estavam a fugir da guerra colonial”.

Nessas comunidades, é frequente apelidarem a experiência de “horrível”, mas é com muito carinho que recordam as pessoas de São João, garante Richard Simas, acrescentando que “foi uma experiência que os marcou para sempre”.

Um sentimento que é espelhado do outro lado do Atlântico Norte, assegura o autor, afirmando que “havia muita gente a chegar à Terra Nova, mas foi Portugal que deixou marcas naquele sítio”.

Quanto às valsas, o escritor está convencido que Art Stoyles “as inventou, mas talvez ele tenha inventado um tipo de emoção, porque ele de facto conviveu com aqueles marinheiros, visitou aqueles barcos”.

“Acho que a emoção que aqueles pescadores têm quando estão no porto, e há icebergs lá fora e eles pescaram 18 horas durante um dia… esta sensação de nostalgia não é um exclusivo português, muitas pessoas têm-na, mas os portugueses têm uma grande parte disso”, conclui.

LUSA/HN

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