Porque razão as curvas de infeção da Covid-19 se comportam de forma tão inesperada?

27 de Agosto 2020

Com o primeiro pico epidémico da Covid-19 atrás de si, muitos países explicaram a diminuição do número de infeções através de intervenções não-farmacêuticas. Frases como "distanciamento social" e "achatar a curva" tornaram-se parte do vocabulário comum. No entanto, algumas explicações foram insuficientes: como se poderia explicar o aumento linear das curvas de infeção, que muitos países apresentam após o primeiro pico, em contraste com as esperadas curvas em forma de S dos modelos epidemiológicos?

Num novo artigo publicado em “Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America” (PNAS), os cientistas do “Complexity Science Hub Vienna” (CSH) e da Faculdade de Medicina daquela cidade, são os primeiros a oferecer uma explicação para o crescimento linear da curva de infeção.

“No início da pandemia, as curvas de infeção da Covid-19 mostraram o crescimento exponencial esperado”, diz Stefan Thurner, presidente da CSH e professor de “Ciência de Sistemas Complexos” na Faculdade de Medicina de Viena. Isto pode ser bem explicado pelo chamado “efeito bola de neve”: uma pessoa infetada infetaria algumas outras, e numa reação em cadeia, estas transmitiriam também o vírus a outras pessoas. “Através da adoção de medidas como o distanciamento social, os governos tentaram manter a taxa de crescimento abaixo da taxa de recuperação e, portanto, reduzir maciçamente o número de novas infeções. Nesta lógica, no entanto, os indivíduos teriam infetado menos do que uma outra pessoa, e a curva teria achatado, acabando por chegar a zero, algo que não aconteceu”, explica Thurner.

“Em vez disso, o que vimos foi um nível constante de infeções com um número semelhante de novas infeções todos os dias”, acrescenta o coautor da investigação, Peter Klimek (CSH e Faculdade de Medicina de Viena). “Explicar isto com modelos epidemiológicos-padrão seria basicamente impossível”.

A utilização de modelos epidemiológicos tradicionais teria exigido muitos aperfeiçoamentos dos parâmetros, tornando o modelo cada vez menos plausível. “Se se quiser equilibrar as medições para que o número de reprodução R se mantenha exatamente em 1 – algo que explicaria o crescimento linear -, seria necessário reduzir os contactos pela mesma percentagem exata e constante. Na realidade, isso é extremamente improvável”, explica Peter Klimek.

De facto, a probabilidade de observar o crescimento linear nestes modelos parcelares standard é praticamente igual a zero, salientam os cientistas do CSH. Tiveram, portanto, de alargar o modelo e procurar mais explicações.

Os cientistas da complexidade explicaram a forma linear das curvas através de uma forma de propagação diferente daquela que era inicialmente esperada: assumiram que a dinâmica de propagação continuava em pequenos e limitados aglomerados. “A maioria das pessoas foi trabalhar, infetou-se e contagiou duas ou três pessoas em casa; depois essas pessoas foram novamente para o trabalho ou para a escola. A infeção estava basicamente a espalhar-se de aglomerado para aglomerado”, diz Stefan Thurner, que implementou o modelo na prática. “A mudança das curvas de infeção de S para um comportamento linear é claramente um efeito de rede – uma dinâmica muito diferente dos grandes eventos de superdifusão”.

Os cientistas mostraram que existe um número crítico de contactos, que denominam “grau de redes de contacto” ou Dc, abaixo do qual o crescimento linear e a baixa prevalência da infeção devem ocorrer. Encontraram um Dc igual a 7,2, assumindo que as pessoas circulam numa rede de cerca de cinco pessoas e que a redução efetiva durante o confinamento foi da dimensão média de um agregado familiar (2,5 pessoas).

Em vez de terem de afinar parâmetros, o seu modelo permite uma vasta gama de possibilidades que mantêm as curvas de infeção lineares. Explica porque é que as curvas de infeção lineares aparecem em tantos países, independentemente da magnitude das intervenções não-farmacêuticas impostas.

Numa outra etapa, os cientistas compararam a Áustria, um país que respondeu com um confinamento severo no início, e os Estados Unidos, que inicialmente não impuseram medidas severas. De acordo com Peter Klimek, o seu modelo funciona nos dois cenários: “Ambos os países mostraram curvas lineares, mas no caso dos Estados Unidos e de outros países como a Suécia, estas aconteceram a um nível muito mais elevado”.

O modelo não só explica a emergência de um regime de crescimento linear, mas também porque é que a epidemia pode parar abaixo dos níveis de imunidade de grupo. Para o procedimento padrão de modelização, os cientistas da complexidade utilizam o chamado modelo compartimental com modelos SIR (Suscetíveis – Infetados – Recuperados), estendendo-o com a transmissão de grupo acima descrita.

Mas o que acontecerá nos próximos meses, com o potencial novo aumento dos números? Com fatores de risco adicionais como pessoas que regressam de férias do estrangeiro e da província, a propagação da doença poderá mudar. “Se as infeções tornarem a aumentar, existe o potencial de as curvas lineares voltarem a transformar-se em crescimento exponencial, algo que as pessoas descreveram como uma segunda vaga”, conclui Peter Klimek.  

Mais informação:

Stefan Thurner, Peter Klimek, Rudolf Hanel, A network-based explanation of why most COVID-19 infection curves are linear, PNAS August 24, 2020 https://doi.org/10.1073/pnas.2010398117

NR/HN/Adelaide Oliveira

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