Luís Gouveia Andrade Médico Oftalmologista Grupo Lusíadas Saúde Director Geral da InfoCiência

Intervenções não farmacológicas na era covid-19 Não deveriam ser objecto de estudos controlados?…

08/29/2020

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Intervenções não farmacológicas na era covid-19 Não deveriam ser objecto de estudos controlados?…

29/08/2020 | Opinião

Eis uma questão interessante e pouco, ou nada, abordada.

Confesso: a ideia não é minha. Li-a num artigo de opinião de Margaret McCartney, publicado hoje no British Medical Journal*.

O conceito é interessante e merece reflexão.

As intervenções farmacológicas (fármacos, vacinas, dispositivos médicos) são submetidas a estudos clínicos controlados, aleatorizados e com significância estatística antes de serem aprovados e disponibilizados. Esses estudos, como sabemos, são demorados, exaustivos e minuciosos mas a sua realização impõe-se para validar a eficácia e a segurança dessas intervenções. E essa avaliação continua na fase pós-comercialização.

As intervenções não farmacológicas não passam por este crivo por se assumir que não se associam a efeitos adversos. No caso da covid-19 podemos pensar na distância de segurança (que outros trabalhos consideram ter sido definida com base em dados pouco recentes), no uso de máscaras faciais em diversos contextos, nos diferentes modelos de retoma da actividade escolar (presencial, à distância ou misto). Todas estas medidas beneficiam aparentemente de um halo de bondade e de benignidade pelo que não se justifica perder tempo a avaliar a sua eficácia e segurança.

Este tema ganha ainda maior relevância se considerarmos que os tratamentos farmacológicos visam grupos específicos de pacientes ou da população mas as medidas não farmacológicas são recomendadas/impostas a populações inteiras.  

Exemplos práticos:

  • Quem usa máscara tenderá a higienizar as mãos menos vezes?
  • O uso de máscara em grandes superfícies fará com que as pessoas se preocupem menos com a distância física?
  • O uso de máscara fará com que os grupos de risco saiam mais de casa e exibam comportamentos menos seguros?

Como todos vemos, as máscaras estão a ser usadas das piores maneiras possíveis. Como adereço no braço (nova moda deste Verão), penduradas no espelho retrovisor dos carros, no queixo, na testa.

Que riscos implicam estas práticas? A que outras infecções podem as pessoas estarem expostas por causa desta má utilização?

Para pessoas com claustrofrobia ou com outros distúrbios psicológicos, a máscara pode ser um problema. Para as pessoas com problema de audição, esse problema é mais do que evidente. A que riscos adicionais são expostos estes grupos?

No plano social, o preconceito vai crescendo, a emissão de juízos de valor ganha força. É comum nas redes sociais vermos comentários do género “eu uso máscara porque respeito o próximo”, assim assumindo que quem não o faz não exibe esse respeito. A sociedade fica mais dividida, a desconfiança aumenta, as relações sociais sofrem uma erosão acrescida. Qual a importância de tudo isto? Como se mede? Como se avalia? Quais os custos sociais e sanitários?

No fundo, as recomendações são emitidas de um modo errático, ao sabor da última notícia, do último dado, das informações vindas de outros países ou regiões sem se fazer qualquer avaliação antes, durante ou depois da sua implementação.

Porque não, como sugere Margaret, selecionar escolas de um modo aleatório numa determinada área geográfica e comparar o efeito de uma actividade normal com o uso de máscara facial, no que se refere à presença do SARS-coV-2?

Imagina-se facilmente a resposta e os inúmeros obstáculos que surgiriam, a começar pelo consentimento que os pais teriam de emitir para permitir que os seus filhos fossem “recrutados” para um estudo deste tipo…

Mas o facto é que, sem esse tipo de avaliação segmentada, o que sobra é a implementação em massa de medidas como o uso de máscara ou de outras, que todos têm de aceitar porque não são consideradas estudos clínicos e, como tal, não requerem qualquer consentimento. E essa implementação ocorre sem qualquer avaliação científica e, por isso, com uma enorme margem de incerteza.

Alguns bons exemplos começam a surgir. O estudo alemão sobre o risco de se organizar eventos em espaços fechados. O estudo dinamarquês para avaliar se o uso de máscara facial realmente protege contra a infecção por SARS-coV-2. Na Noruega, um estudo para comparar a abertura total versus parcial em escolas primárias e em campus universitários.

Tudo isto pode parecer supérfluo e desviado da realidade mas, se ponderarmos devidamente, não o é. Não podemos nem devemos assumir que as intervenções não farmacológicas não se associam a efeitos negativos e não podemos afirmar a sua eficácia sem estudos controlados que o confirmem.

Não podemos ter esta dualidade de critérios quando falamos de fármacos ou de máscaras ou de isolamento social. A Medicina Baseada na Evidência tem respostas para todas estas abordagens e é nela que nos devemos apoiar para tomar decisões que afectam milhões de pessoas, que têm custos, um tremendo impacto social e ecológico e cujos benefícios não estão quantificados.

Existem na História recente exemplos de medidas aparentemente boas com resultados desastrosos, apenas porque pareciam tão óbvias que nunca foram validadas. Recordo, como o faz Margaret, a recomendação do Dr. Benjamin Spock no seu bestseller relativa à posição em que os bebés deveriam ser colocados a dormir, de barriga para baixo, e que a evidência demonstrou ter-se associado a milhares de casos de morte súbita… 

Apenas assumir que uma medida é boa porque parece ser boa não chega.

Isso é pouco. Muito pouco…

*  Margaret McCartney: We need better evidence on non-drug interventions for covid-19

28 Agosto, 2020

https://blogs.bmj.com/bmj/2020/08/28/margaret-mccartney-we-need-better-evidence-on-non-drug-interventions-for-covid-19/?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+bmj%2Fblogs+%28Latest+BMJ+blogs%29&g=w_bmj-com

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