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O Gajo e os gajos
De acordo com a nova denotação oficial, “gajo” é a designação própria para nos referirmos a médicos, pelo que infiro que é um termo honorífico a usar para nos referirmos a todas as figuras de qualquer prosa, mesmo quando os sujeitos sejam personagens da telenovela cujo elenco são os dignatários do Estado. A “gajaificação” está em marcha.
Em off, enquanto “desligado”, o Dr. António Costa, o Gajo, disse, a propósito de um surto de COVID-19 num lar no Alentejo, que “A última coisa que diria é que o presidente da ARS mandou para lá os médicos fazerem o que lhes competia, e os gajos, cobardes, não fizeram. Não contem comigo para esse género de conversa lamentável”.
Para já, será preciso ver que a transcrição implica dois entendimentos diferentes e nada irrelevantes. Foram gajos, cobardes, que não fizeram ou gajos cobardes que nunca fariam? No primeiro caso diria que os gajos somos todos, os médicos, enquanto no segundo terão sido só os médicos pusilânimes, coisa que existe, embora se deva distinguir “cobardia”, medo que determina receios e modela a ação, de bom-senso, hipocondria, preguiça ou medo irracional.
Ficámos, portanto, sem saber se os gajos não foram ao lar de Reguengos, como não terão ido a um outro no Barreiro e sabe-se lá a quantos outros, por falta de condições de segurança, o que seria bom-senso, ou por cobardia p.d. Não é claro se até houve indisciplina e percebe-se que o ministério da saúde não queira ir por aí. Os gajos tinham razão em não querer ir ao lar ou os gajos estão-se mesmo nas tintas para os seus superiores hierárquicos? Se marimbaram, isso diz muito da falta de capacidade de liderança dos gajos que mandam nos outros gajos. No meio de tudo isto, ainda não percebi se os gajos eram gajos de hospital ou de centro de saúde, médicos de família ou de saúde pública.
Depois andámos entretidos a ler coisas sobre que o off não era on, logo não seria para citar, como se o gajo nunca tivesse dito aquilo que disse, e a “estupefacionarmo-nos” com comunicados e passa culpas de um grande jornal semanário e de uns quantos, mais chicos espertos que púdicos, a retirarem o infame vídeo dos seus facebooks, blogs, eu sei lá de que ferramentas de engenharia social moderna.
A coisa poderia ter ficado por aqui, sendo que as questões essenciais sobre o que se passou em Reguengos ainda estavam e estão por esclarecer. Os gajos de que eu faço parte preferiram aproveitar a abébia do Gajo PM e fizemo-nos todos de ofendidos. O que é que o Gajo estava à espera depois do prémio da Champions? O Gajo andava a pedi-las. Depois da Champions e antes de nos chamar gajos já tinha ensaiado a crítica aos médicos que passam o dia no consultório “em videoconferência para as televisões”. O alvo era claro e só enfiou o barrete quem quis. Todavia, para quem passa o dia a ver doentes a afirmação teve o seu tique de acinte. Olhe, eu nem para ver a TV tinha tempo e agora que tenho estado de férias só vejo a Netflix, passo a publicidade, para não ter de ouvir “notícias” e disparates.
O Senhor Bastonário tentou fazer-se passar por gajo e foi à reunião com os gajos. Julgava que no meio de gajos conseguia passar por Senhor. Enrolaram-no. Os gajos sabem muito. No fim da reunião, apesar das explicações do Gajo que desvirtuou o que tinha dito ao Bastonário, o Prof. Miguel Guimarães tentou ser Senhor. Comentou pouco. Percebeu o engano. Chegado ao escritório, lá se apressou a escrever uma carta a explicar aos Colegas que afinal o Gajo do costume estava a virar o bico ao prego, as desculpas aos médicos não eram para ser públicas, e tudo continuava na mesma.
O caso de Reguengos de Monsaraz exemplifica uma das piores formas de reagir aos incidentes em saúde. Não faltam relatórios. Algum há de estar bem feito. Provavelmente, todos terão contributos úteis. Para lá da blague de quem foi a gaja que não leu e deveria ter dito que tinha lido, a resposta generalizada aos relatórios foi encontrar culpados, a que eufemisticamente se chama apurar responsabilidades, em vez de fazer uma análise de causas profundas e montar um conjunto de respostas padrão que possam servir para evitar ou mitigar incidentes futuros. Nada disso. Entretanto os surtos em lares estão a aumentar e a culpa há de ser de um gajo qualquer, sendo que o gajo mais provável é o vírus, conjugado com a inépcia da multidão de gajos que só agora percebeu que toda a questão do risco infecioso para pessoas idosas e confinadas teria merecido uma abordagem diferente. Dizer que foi tudo feito como estava programado depois de assistir ao descalabro só prova que o que estava planificado não serviu e não deverá servir nos casos seguintes. Já mudaram o modelo de prevenção de surtos em lares?
Não estou certo de que a gaja da segurança social já tenha percebido que os gajos da saúde são muitos mais importantes do que apenas para ajudar a pagar as contas das unidades de cuidados continuados e, quem sabe, o modelo médico das unidades de longa duração devesse ter sido alargado aos lares. A gaja inventou umas brigadas de intervenção rápida, presume-se que com paraquedistas para aterrarem no pátio das instituições e chegarem já em modo NBQ (nuclear, biológico e químico) aos locais de maior promiscuidade viral. Reparem, é uma resposta reativa, mais uma, não preventiva precoce.
Entretanto, os gajos de um sindicato dos gajos (não me lembro se de todos os sindigajos) vieram acenar com o acordo coletivo de trabalho (ACT) para justificar as eventuais recusas de assistência a doentes em lares, apesar dos utentes em lares deverem ter médico de família e os médicos de família terem a obrigação de fazer domicílios e as visitas domiciliárias até serem uma forma de ganho de incentivos remuneratórios nas USF. Mas o importante é que para os idosos e população em geral, o conteúdo do ACT é absoluta e justificadamente indiferente. Afinal, digam lá, os gajos baldaram-se ou não? Tiveram medo ou eram todos sindicalistas e sindicalista que se preze só atende no horário e local de trabalho previsto em ACT?
Mas é verdade que a regulação sobre quem deve tutelar a segurança na saúde é ainda uma confusão. Muitos atores, DGS, ARS, ACSS, IGAS e ERS e muitos profissionais com Ordens várias que também acham que podem tutelar o Estado. Não podem. O Gajo, o PM, tem razão por uma vez. Todavia, há uma função fiscalizadora das condições de trabalho e de exercício profissional que pertence às Ordens profissionais e que os gajos do governo e da administração pública não devem desprezar. As Ordens, em primeiro lugar, tutelam o exercício profissional, mas falham na prevenção de danos.
O caso do “bébé sem rosto” é paradigmático e a gaja da saúde não tem razão quando julga que este caso não fragilizou o SNS. Os setores não são hermeticamente separáveis. A falta de auditorias de qualidade é ainda maior no SNS do que nos hospitais privados e nos PPP até à acreditação obrigatória pela Joint Commission International. A gaja da saúde é responsável por todo o sistema e não pode sacudir a água do capote. É claro que não tem culpa de que um gajo seja ecografista e se tenha enganado, mas o problema está, repito, na prevenção e na realização de auditorias e, à atenção da Ordem, na recertificação para que se possa tentar separar os médicos dos gajos. Punir, é importante e pedagógico, mas não resolve o prejuízo passado.
Os números semanais crescem e as gajas dizem que são acertos. Não voltem a cair messa armadilha. Tudo controlado? Não, a gaja da saúde já o vai assumindo. Há que reconhecer o mérito de se encolher na humildade que a ignorância nos impõe. Não duvido que estamos “melhor preparados”, embora longe de completamente preparados. Apostaram na compra de ventiladores, made in RPC, e alargamento de espaços físicos para colocação das camas. Não chega. Faltam especialistas, gajos capazes de seguirem doentes de cuidados intensivos, a rede de referenciação está publicamente omissa e não estou nada seguro da efetividade do programa de vacinação que for instituído. Ninguém está, nem os que fabricam as vacinas
Estou preocupado e a gajada que não estiver não saberá responder ao que aí vem. Ainda poderemos vir a ter surpresas e todos os gajos serão necessários. Hostilizar setores profissionais, preferir o insulto à diplomacia e à motivação, gerar divisões, confundir otimismo com mentira, são erros monumentais.
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