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Existe Medicina Sem Afecto? Claro, Mas Não É a Mesma Coisa…
O papel nuclear de um médico é, sem dúvida, ouvir, avaliar, observar, diagnosticar e tratar. A Medicina é, nesse sentido, uma profissão tão técnica e objectiva quanto qualquer outra: existe um problema que tem de ser identificado e resolvido.
Apesar de concordar com esta visão tecnicista da Medicina, cada vez mais suportada pela tecnologia, pela inteligência artificial, pela necessidade de agir de acordo com as melhores práticas e com a Medicina baseada na evidência, apesar de os profissionais de saúde serem cada vez mais pressionados a fundamentar as suas decisões e os seus actos e a terem de responder por eles, continuam a existir na Medicina particularidades que a tornam diferente de qualquer outra actividade.
Por um lado, a incerteza de que se reveste qualquer acto médico. Apesar de tudo o que referi antes, uma mesma cirurgia realizada pela mesma equipa no mesmo local e com os mesmos recursos pode conduzir a resultados completamente díspares em função das características do doente, da sua resposta inflamatória, da sua capacidade de cicatrização, da diferente interacção entre o seu organismo e a doença que o acomete e que se procura tratar. Por mais protocolos que se cumpram, por mais check-lists que se criem, por mais experiência que se acumule, essa incerteza nunca será erradicada e, por esse motivo, nunca se pode garantir um resultado a 100%.
O mesmo se passa com os medicamentos. Por mais bem estudados que sejam, a sua interacção com cada um de nós está sujeita a variações de eficácia e segurança que, com frequência, obrigam a ajustes posológicos ou mudanças de tratamento.
Deixo para o fim o aspecto mais relevante de todos. A Medicina tem como “objecto” o ser humano e é exercida (pelo menos, por enquanto…) por seres humanos. E aqui a variabilidade é infinita.
Temos de um lado o doente, fragilizado pela sua condição, mais ou menos capaz de a verbalizar e de a entender, mais ou menos assustado perante ela, mais ou menos receptivo às opções terapêuticas disponíveis.
Temos do outro lado o profissional da saúde, com o seu conhecimento, com a sua experiência, mas também com o seu passado, a sua educação, a sua vivência de doenças próprias ou de familiares e amigos. Temos profissionais mais introvertidos ou mais comunicativos, mais contidos no que pensam ou mais expansivos.
E deste binómio nascem relações todas diferentes, todas imprevisíveis, cujo percurso e desfecho nunca serão completamente conhecidos e, provavelmente, seriam diferentes se o profissional fosse outro.
O afecto, o acto de tocar para lá do gesto técnico da observação clínica, pode ter um enorme impacto nesse binómio. O toque (aqui fica tão melhor a expressão “human touch”) é utilizado de modo quase intuitivo por muitos profissionais de saúde, ou porque já o fazem na sua vida social ou porque o entendem como uma expansão do acto de cuidar.
Mas aqui surge todo um mundo de distinções. Existem profissionais que não apenas falam pouco como têm aversão a esse contacto e, do lado do paciente, o mesmo pode acontecer. Alguns encontram nesse calor humano parte do caminho para a confiança e, através dela, para a cura. Outros rejeitam esse tipo de abordagem por a considerarem intrusiva ou pouco adequada e caberá a cada profissional aprender, muitas vezes pelo erro, como se posicionar perante cada indivíduo.
Independentemente de todas estas variáveis, em muitos casos o contacto físico é central na abordagem clínica, por vezes ultrapassando em importância e resultado o processo terapêutico propriamente dito.
É pelo aperto de mão, pelo olhar, pelo sorriso, pelo tom de voz que se quebra o gelo, que se abrem canais de comunicação, que se ganha acesso ao oculto e ao indizível.
É por esse toque que uma má notícia é suavizada e uma boa notícia é catapultada para o estatuto de um evento único.
Esse é, para mim, um dos defeitos das teleconsultas. Ao abolirem essa proximidade, roubam uma das esferas mais vitais da Medicina.
E agora, nesta era, de absoluta higienização do contacto físico, agravada pela barreira física imposta pela máscara que faz com que médicos e doentes nem se conheçam verdadeiramente, um dos trunfos ancestrais da Medicina vê-se interdito, banido, visto quase como uma heresia.
Penso no presente e fico triste e preocupado com o modo como hoje pratico Medicina. E, pior, imagino o futuro e interrogo-me se algum dia se reverterá este estado de coisas, se as pessoas se voltarão a abraçar e a cumprimentar como antes ou se este padrão passará a ser visto como mais “saudável”, mais higiénico e mais seguro.
Daí recusar a expressão “novo normal”. Por não acreditar nem desejar que este modelo de relacionamento se possa converter na norma e não na excepção.
A Medicina é e será uma disciplina fundada no saber, no conhecimento, na tecnologia e na experiência. Mas é também uma actividade profundamente ligada à compaixão, ao amor pelo próximo, ao querer não apenas tratar mas cuidar e acarinhar.
A Medicina faz mais sentido nesta sua concepção holística. É igualmente válida e eficaz quando exercida de um modo puramente racional e objectivo, despido de afectos ou emoções, mas passa a ser algo diferente.
Cada um de nós, profissional ou doente, por vezes as duas coisas, saber qual o melhor modelo para si mas, na verdade, Medicina sem afecto é uma entidade estranha na qual não me revejo e da qual espero não guardar memória futura.
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