Ana Caldeira Presidente do Clube Português do Pâncreas, secção especializada da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, Serviço de Gastrenterologia, Hospital Amato Lusitano, Castelo Branco

Dia Mundial do Cancro do Pâncreas – Ana Caldeira: “Diagnóstico precoce é fundamental”

11/19/2020

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Dia Mundial do Cancro do Pâncreas – Ana Caldeira: “Diagnóstico precoce é fundamental”

19/11/2020 | Consultório

O cancro do pâncreas é já a terceira causa de morte por cancro em toda a Europa. Com uma evolução recente, este cancro tem vindo a afetar uma população cada vez mais jovem e mais numerosa e, apesar da menor incidência, causa já mais mortes que o cancro da mama ou próstata. Segundo a Dra. Ana Caldeira, presidente do clube português do pâncreas da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, isto acontece sobretudo devido à dificuldade em rastrear a maior glândula do corpo humano, mas os estudos mais recentes permitiram descobrir alguns alertas e sinais que, em algumas pessoas, se manifestam até 36 semanas antes da maioria dos diagnósticos de cancro do pâncreas: os níveis de glicémia. 

HealthNews: No que consiste o cancro do pâncreas, até porque existem vários tipos, e quais os seus principais sintomas.
Dra. Ana Caldeira: Quando falamos de cancro do pâncreas falamos quase sempre daquele que é o tumor mais maligno do pâncreas, que é o adenocarcinoma. Há outros tumores menos agressivos, por exemplo o tumor neuro endócrino, mas quando falamos do cancro do pâncreas e deste dia mundial do cancro do pâncreas aquilo que que se pretende é chamar a atenção para o adenocarcinoma do pâncreas, que é um tipo específico mas de longe o mais frequente. Conta com mais de 90% dos casos de cancro de pâncreas em todo o mundo, o que faz dos outros uma minoria. 

Em relação aos sintomas, é um tumor um pouco ingrato. E é por isso, se calhar, que é preciso chamarmos a atenção para ele. Até há uns anos falava-se muito pouco deste tumor especialmente porque o prognóstico sempre foi muito mau, mas a incidência tem vindo a aumentar. Se há uns anos atrás não tínhamos tantos casos, não chamávamos tanto à atenção e não falávamos tanto deste cancro é porque ao longo dos anos temos vindo a assistir a um aumento da incidência deste cancro, que é tem associado um prognóstico tão reservado – é por isso que tentamos sensibilizar não só a população em geral, mas também a população médica para esta pandemia que é o cancro do pâncreas. 

Quando disse que esta era uma doença ingrata, disse-o porque os sintomas são muito frustes e inespecíficos. E normalmente, quando surgem é tardiamente e o doente já tem a doença avançada. 

O pâncreas é a maior glândula do corpo humano, mas está muito escondida atrás do estômago, na parte superior do abdómen, mas muito posterior. E tanto esta glândula vai adoecendo como o cancro se vai desenvolvendo de forma muito silenciosa. Os sintomas quase todos associados a outras patologias, e se não estivermos alerta provavelmente não o diagnosticamos. É que o pâncreas está lá muito atrás e é preciso fazer exames específicos para o vermos bem. Mas os sintomas contam essencialmente com dor abdominal geralmente nos quadrantes superiores com irradiação dorsal. Depois temos a icterícia, que é se calhar o sinal mais típico de um cancro do pâncreas, nomeadamente da pressão cefálica da cabeça do pâncreas. Isto porque a cabeça do pâncreas comprime a via biliar e facilmente surge uma icterícia, comichão no corpo e a cúria, que tem como sinal evidente a urina cor de vinho do porto. Depois, há outros sintomas menos específicos, o emagrecimento e falta de peso. Os vómitos, as náuseas, alterações dos hábitos intestinais – tudo sintomas muito pouco específicos de qualquer patologia. 

 

HN – Mencionou o diagnóstico precoce, que parece ser algo comum a todos os cancros, não é verdade?
AC – Efetivamente que quando falamos de oncologia o nosso grande paradigma é o diagnóstico precoce. Qualquer cancro pode ser potencialmente curável se for detetado a tempo e horas, numa fase inicial. E, portanto, esse é o grande paradigma da oncologia; é por isso que todos nos debatemos e tomara nós que conseguíssemos um diagnóstico precoce de todos os cancros que conhecemos. 

No pâncreas, especificamente, o diagnóstico precoce é fundamental porque os sintomas surgem muito tarde, se não só vamos detetar mesmo os cancros já muito avançados. Quando o doente vem ao médico, habitualmente já vem tarde. Este cancro está associado a uma estatística que é assustadora. Esta é a terceira causa de morte por cancro na Europa, logo atrás do pulmão e do cólon. Já ultrapassou os cancros da mama e da próstata, e é importante ter noção de que o este é um cancro muito menos frequente, com uma incidência muito inferior ao cancro da mama e da próstata. No entanto, a mortalidade é muito superior. O que é que isto significa? Que mata muito e que são diagnosticados tarde…

Este é um cancro sobre o qual temos que nos debruçar e o foco tem que ser o diagnóstico precoce. É aí que vamos alterar quer a história natural da doença, quer o prognóstico dos nossos doentes e salvar vidas. 

 

HN – E como é que se pode otimizar o diagnóstico e obter mais diagnósticos precoces?
AC – O diagnóstico precoce vem logo associado ao rastreio. Mas para o pâncreas não existe nenhum rastreio que seja custo efetivo. Como disse, a incidência não é assim tão elevada, a mortalidade é que é. Por norma, só é justificável fazermos rastreio em que haja uma prevalência que justifique. Em que rastreamos 100.000 habitantes e vamos encontrar pelo menos mais de 50 casos. O cancro do pâncreas tem uma incidência a nível mundial que ronda os 10 casos por 100.000 habitantes, que não justifica um rastreio custo-efetivo, e não temos nenhuma modalidade de diagnóstico que nos permita detetar um cancro em fase precoce e que seja custo-efetiva. 

Outra coisa seria se tivéssemos um biomarcador molecular que detetávamos na corrente sanguínea  e que nos permitisse rastrear uma grande fatia da população. Mas não temos nenhum biomarcador nem sanguíneo nem urinário que nos permita isso. Para rastrear o cancro do pâncreas só temos exames muitos diferenciados, como é o caso de uma ressonância ou de uma ecoendoscopia, que são exames caros, o segundo é até um pouco invasivo, e são muito diferenciados não permitindo que utilizamos estes exames em testes de rastreio. 

Então o que é que se faz? Rastreia-se apenas uma população muito específica, que são os doentes com algum componente hereditário ou que têm uma síndrome genética que condicione a predisposição para desenvolver este cancro superior à população normal. Estas pessoas justificam apenas 15% dos cancros do pâncreas. 

 

HN – Segundo informação que recolhi, o cancro do pâncreas é mais incidente na população com idades entre os 55 e os 74 anos. Confirma estas idades, e porquê esta faixa etária?
AC – O cancro do pâncreas surge mais frequentemente após os 70 anos, e é raro antes dos 50. O que deve ter lido, e que me parece ter a ver com isso, é que se formos avaliar os  últimos 40 ou 50 anos o que verificamos é um aumento de casos na faixa etária entre os 50 e os 70 anos. Portanto, apresar de antigamente ser um cancro muito associado ao envelhecimento, hoje a prevalência está a mudar para um cancro que surge mais cedo. Mas, efetivamente, a maior parte dos casos é depois dos 70 anos e há poucos antes dos 50. Entre os 50 e os 70 começa a aparecer uma prevalência elevada que nos preocupa muito.

No ano passado foi feito um estudo muito interessante sobre o cancro do pâncreas e a sua mortalidade em Portugal, que nunca tinha sido feito. E aquilo que se prova é que entre 1991 e 2015 houve uma duplicação de mortes por cancro. Em 1991 tínhamos 700 mortes a nível nacional, e em 2015 temos quase 1.500. E nesse estudo também nos deparámos com esta realidade: entre os 50 e os 70 anos começa a haver uma prevalência preocupante deste tipo de cancro. 

HN – E porque é que as pessoas mais visadas têm geralmente mais de 70 anos?
AC – Na verdade, quase todos os cancros aparece mais frequentemente com o envelhecimento. Isso tem que ver com a própria biologia molecular. Mas existem algumas particularidades que se vão acumulando ao longo dos anos, não só a idade mas também os fatores de risco. Se a pessoa fuma, que é um dos principais fatores de risco deste cancro, é natural que a acumulação do hábito e os seus efeitos vão com o tempo promovendo o aparecimento do cancro numa fase mais avançada.

HN – Essa era outra questão que queria explorar. Quais são os fatores e comportamentos de risco a evitar tendo em conta nesta doença?
AC – Acho que no cancro do pâncreas temos duas grandes áreas: é o diagnóstico precoce e os fatores de risco. Só que os fatores de risco não são nada de mais e o mesmo para todas as outras doenças. No fundo, é ser saudável porque o principal fator de risco é o tabaco. Um fumador tem duas vezes mais risco de desenvolver cancro do pâncreas do que um não fumador. E depois temos os outros: a obesidade, a alimentação (que tem que ser saudável, com verduras e sem a predominância de carnes vermelhas ou produtos processados) e o consumo de bebidas alcoólicas. 

Há um fator de risco e uma chamada de alerta muito importante para a comunidade médica que é a diabetes. Hoje está provado que um diagnóstico de diabetes após os 50 anos é um fator de risco importante que tem que nos levar a despistar uma neoplasia do cancro do pâncreas por trás desta diabetes. Sabemos hoje que uma em cada 100 pessoas que são diagnosticadas com diabetes após os 50 anos vai desenvolver um cancro do pâncreas nos próximos três anos. E também sabemos que a desregulação do perfil glicémico acontece 30 a 36 semanas antes do diagnóstico do cancro. Não quer dizer que isto aconteça em todos os casos, mas há estudos que provam que acontece em grande parte dos casos. Isto significa que a glicémia já começa a variar muito antes do diagnóstico do cancro: 36 semanas antes. Isto significa que se estivermos alerta para o nosso doente – nomeadamente os colegas da medicina geral e familiar – e começarem a surgir glicémias consistentemente elevadas durante algum tempo num indivíduo com mais de 50 anos, temos que lhe fazer um exame ao pâncreas. 

É importante rastrear, ou fazer um “pseudo-rastreio” para despistar uma neoplasia do pâncreas detrás de uma diabetes.

HN – E terapias? Quais são e em que situações se aplicam?
AC – Até nisso o cancro do pâncreas é complexo. Ele tem uma particularidade que é como se fizesse uma cápsula, e até os para os agentes quimioterápicos se torna difícil lá chegar. Mas tem-se investido muito nessa área, e têm havido alguns progressos.

É preciso ter noção que o prognóstico não é bom. Quando fazemos um diagnóstico, 20% dos doentes são operáveis e potencialmente curáveis. Porque mesmo destes 20% operáveis, apenas 30% estarão vivos ao fim de cinco anos. Portanto, mesmo nos potencialmente curáveis, o diagnóstico não é bom. 

Quanto aos outros 80%, temos cerca de 30% destes em que a doença está localmente avançada e não é possível operar de imediato, mas podemos fazer tratamentos neoadjuvantes para reduzir a dimensão do tumor e mais tarde propor para cirurgia. Mas depois há 50% em que a doença já tem metástases e temos que optar pelo tratamento paliativo.

Nos doentes operáveis, como já disse, poderá haver um cenário positivo. Também é possível haver cura no cancro do pâncreas. Nos doentes que não são imediatamente operáveis, aqueles em que o tumor está localmente avançado e em que temos de optar por uma terapêutica neoadjuvante, hoje temos bons sinais e algum progresso nesta área. A quimioterapia neoadjuvante e os tratamentos que fazemos em neoadjuvância são cada vez mais personalizados. Neste momento conseguimos perceber a biologia molecular do tumor e escolher os quimioterápicos de acordo com aquele tumor especificamente. É quase um tratamento personalizado. Vamos tratar o tumor daquela pessoa. Não é igual para todos porque desta forma conseguimos melhorar os resultados. Alguns deles conseguimos ressecá-los com margens de resseção livres e com hipótese de cura, apesar de inicialmente não parecer que isso fosse acontecer. 

Depois temos também a quimioterapia e a própria imunoterapia também tem revelado algum progresso nesta área. E claro temos um suporte muito bom da parte das unidades de cuidados paliativos, que nos ajudam a tratar a dor e todas as complicações associadas à doença e que nos permitem manuseá-la de uma forma que nos parece tranquila para os nossos doentes.  

 

HN – Para encerrar, qual é a importância deste tipo de iniciativas, como é o caso do Dia Mundial do Cancro do Pâncreas?
AC – Como já disse mais do que ma vez, este cancro é ingrato. Nós não conseguimos dizer às pessoas para irem ao médico por causa de um sinal em particular. Ou quando o conseguimos fazer, é porque já é tarde. Mas acho que é muito importante para sensibilizar a população nomeadamente pelos fatores de risco. Porque se temos um cancro em que o prognóstico é mau em que os doentes nos chegam tarde, também os fatores de risco permitem a cada um alterar o seu caminho. Dois terços dos fatores de risco para este cancro são modificáveis pelo próprio indivíduo. Ou seja, são escolha nossa. Se nós sabemos que estes fatores podem proporcionar o aparecimento de um cancro no pâncreas, então é mais uma chamada de atenção. Mas mais uma vez reforçar que o que comemos, fazemos e bebemos se vai traduzir no nosso organismo. 

Depois, acho que é também muito importante para a comunidade médica, que é aí que tem que estar o foco. Nomeadamente os colegas de medicina geral e familiar, que têm que estar alerta, principalmente para a questão da diabetes. 

Até para nós médicos é importante relembrar este tumor, porque ele está muito escondido e se não formos ver dele e se não o formos procurar, não o vamos diagnosticar. 

Em relação à pandemia, este é já normalmente um tipo de cancro muito silêncios e não podemos deixar que esta fase de pandemia o silencie ainda mais. Por isso, os doentes têm que recorrer aos cuidados de saúde, que têm que estar alerta para este cancro que está associado a este diagnóstico tão sombrio.

 

 

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