Luís Gouveia Andrade Médico Oftalmologista Grupo Lusíadas Saúde Director Geral da InfoCiência

Cotovelo Versus Mão. Para Repensar a Etiqueta Respiratória…

11/26/2020

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Cotovelo Versus Mão. Para Repensar a Etiqueta Respiratória…

26/11/2020 | Opinião

A Ciência e a Medicina sempre se caracterizaram pelo seu dinamismo e pela velocidade vertiginosa a que os conceitos se alteram, tudo isto ainda acelerado pelo extraordinário contributo da tecnologia, que tem permitido reduzir tempos e aumentar a nossa capacidade de intervenção em tantos domínios.

Provavelmente, grande parte do que aprendi durante o Curso de Medicina é já obsoleto e muitas das intervenções farmacológicas ou cirúrgicas seriam hoje encaradas como rudimentares e muito aquém da legis artis.

Em contextos especiais, como o de uma pandemia, a necessidade imperiosa de tomar medidas, de adquirir conhecimento e de encurtar etapas torna todo esse dinamismo ainda mais desenfreado, obrigando, por isso, a correcções de rumo mais frequentes.

Recentemente, numa conversa informal, foi-me transmitida a opinião de uma Professora de Microbiologia do Curso de Medicina numa Faculdade de Madrid sobre a recomendação, generalizada e nunca contestada, de tossir e espirrar, na ausência de um lenço, para o cotovelo e não para a mão, como meio importante de reduzir o risco de contágio por microrganismos presentes nas vias aéreas.

Essa recomendação faz-se acompanhar por outra, plenamente vulgarizada, de não cumprimentar ninguém com um aperto de mão e este foi sendo gradualmente substituído pelo… toque entre cotovelos. Ou seja, o local para onde passámos a tossir e espirrar…

Problemas?

  • Os cotovelos, do mesmo modo que as mãos, pousam nas superfícies.
  • Mas os cotovelos, ao contrário das mãos, não podem ser desinfectados frequentemente.
  • Os cotovelos são agora, ao contrário das mãos, o ponto de contacto entre pessoas o que implica, por um lado, uma distância inferior a um metro e, sobretudo, um potencial foco de transmissão pela referida ausência de desinfecção.
  • Se espirrarmos ou tossirmos para as mãos podemos prontamente desinfectá-las ou lavá-las. Os cotovelos e a roupa, não. E não mudamos de roupa cada vez que espirramos ou tossimos.

Na altura, dada a minha experiência como docente de Microbiologia, fiquei a pensar sobre este assunto e procurei algum suporte científico.

Curiosamente, encontrei no Journal of Public Health um editorial publicado em Junho deste ano sobre esse tópico*. E a opinião expressa é muito idêntica a esta.

De facto, a Organização Mundial da Saúde recomenda como intervenção para reduzir a transmissão de vírus respiratórios o uso do cotovelo quando se tosse ou espirra.

Mas, à luz do que aqui escrevo, o contacto pelo cotovelo pode ser um factor de risco potencial para a transmissão de microrganismos, sobretudo considerando o cenário de se espirrar ou tossir e de se utilizar esse receptáculo não passível de desinfecção como forma de cumprimento.

Tossir ou espirrar para as mãos tem a vantagem de permitir uma desinfecção quase imediata. E se elas não forem usadas como forma de cumprimento ainda melhor.

Recomendar, em simultâneo o uso do cotovelo como local para espirrar e tossir e como forma de cumprimento é contraditório e potencialmente mais prejudicial.

Esta reflexão é relevante porque, em contexto de cenários epidemiológicos complexos como o actual, tendem a ser emitidas normas e recomendações de uma forma empírica e não devidamente sustentadas por estudos controlados. Já abordei este tema a propósito das máscaras. A necessidade de tomar decisões rápidas justifica esse empirismo, mas importa, com tempo, ir revendo, repensando e estudando as medidas propostas para validá-las ou alterá-las.

No caso em apreço, a revisão que fiz é quase unânime a defender esta prática mas, na verdade, essa defesa decorre do bom-senso e não de nenhum estudo real. O editorial que cito, e a Professora de Microbiologia que referi, são das poucas vozes dissonantes, mas que, por isso mesmo, merecem também ser ouvidas para, pelo menos, estimularem o nosso pensamento crítico e nos permitir interiorizar cada gesto.

Uma solução possível seria manter o uso do cotovelo para a etiqueta respiratória, mas desenvolver uma campanha de comunicação que vise evitar o uso do cotovelo como forma de cumprimento. Assim teríamos o melhor dos dois mundos e impedir-se-ia este tipo de contradições.

Na verdade, em tempos como estes, o processo de aprendizagem é e deve ser constante. A informação é extremamente dinâmica e profundamente mutável. Como tal, o risco de se darem passos plenos de boa vontade, mas cientificamente incorrectos é enorme.

Uma avaliação e humildade constantes, um espírito crítico sempre atento e uma comunicação eficaz serão as melhores ferramentas para oferecer, a cada momento, as propostas mais válidas para caminhar naquilo que todos inequivocamente desejamos: virar esta página das nossas vidas.

 

* Haixia Liu e col., Elbow instead of hand: is it more helpful or harmful? Journal of Public Health, https://doi.org/10.1093/pubmed/fdaa072

 

 

1 Comment

  1. Victor Moura

    Não ganhei esse hábito de cotovelar para cumprimentar. Prefiro fazer uma vénia, ainda que ligeira, e complementar com um gesto da mão direita em jeito de saudação, tudo à distância conveniente…2 m de preferência… Victor Moura

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