Entrevista Dr. Nuno Mendonça: “Zolgensma – Um medicamento digno de ficção científica”

12/16/2020
O Dr. Nuno Mendonça saiu de Portugal há alguns anos para trabalhar na área de desenvolvimento clínico. Hoje trabalha com a Novartis Gene Therapies sendo responsável pelo desenho, planeamento e monitorização de ensaios clínicos como o STR1VE-EU, que estudou a eficácia de uma nova terapia genética de administração intravenosa (o Zolgensma) no tratamento de crianças com Atrofia Muscular Espinhal (SMA).

Como estão estas crianças sete anos depois do início do estudo e da realização da primeira terapêutica, que consiste numa única injeção vitalícia?

HealthNews – O que é a SMA e como se manifesta?
Nuno Mendonça – A Atrofia Muscular Espinhal é uma doença a que se chama neuromuscular, porque envolve a perda de neurónios motores. Há vários tipos desta doença, mas aquela em que nos vamos focar é a SMA tipo 1, que é a mais grave.
Esta e uma doença genética rara, que aparece numa criança em cada 10.000 nascimentos. Embora seja rara, é uma causa importante de mortalidade infantil. Esta doença resulta da perda do gene SMN1, que codifica uma proteína (a Survival Motor Neuron – SMN) que é necessária para a sobrevivência dos neurónios motores. Portanto, sem esta proteína os neurónios motores morrem e subsequentemente aparecem sintomas como incluir fraqueza muscular, problemas respiratórios, dificuldades em engolir a comida e, eventualmente, num curto espaço de tempo, as crianças ficam sem se conseguir mexer. A maior parte destas crianças morre antes de chegar ao segundo ano de vida. Portanto, esta é uma doença absolutamente trágica na apresentação e evolução clínica.
Embora a Atrofia Muscular Espinhal tipo 1 consista na perda do gene SMN1 que mencionei, existe um segundo gene – o SNM2 que produz uma a mesma proteína mas em muito menor quantidade. Ajuda qualquer coisa, mas não satisfaz a falta do SNM1. Ainda assim, as células podem ter várias copias do gene SNM2, e quantas mais cópias tiverem, mais proteína funcional produz, melhor o prognóstico e menos graves são os sintomas.

HN – E o que torna tão complicado tratar esta doença?
NM – A morte neuronal é irreversível. Portanto, não temos tratamentos eficazes para nenhuma doença que cause morte neuronal, como a doença de Alzheimer, a esclerose lateral amiotrófica, a doença de Parkinson, etc… Todas estas doenças que levam à morte de neurónios são, por natureza, irreversíveis. É isso que acontece na SMA sem tratamento. No entanto, na SMA sabemos exatamente o que está a causar a doença – ausência dos genes. Assim, ao reintroduzir os genes antes que ocorra morte neuronal extensa podemos levar à recuperação das crianças. Quando introduzimos os genes queremos fazê-lo o mais rápido possível, para evitar que a criança tenha grandes sintomas e complicações. A parte difícil é mesmo essa: substituir o gene e pô-lo a funcionar em crianças que nasceram sem ele.

HN – Porque todo o estudo acontece em crianças mesmo muito jovens. A idade média era 16 meses, certo?
NM – Sim, no STR1VE-EU as crianças, para poderem participar no estudo, tinham de ter menos de seis meses de idade e todas as crianças que participaram já tinham sintomas. Nos primeiros meses de idade estas crianças já perderam uma parte significativa dos neurónios motores, e portanto há logo uma emergência de sintomas.

HN – Mas é fácil perceber estes sintomas em crianças tão jovens, com menos de seis meses de idade?
NM – Não é muito fácil, é verdade. As crianças têm as suas etapas de desenvolvimento motor e, dependendo da gravidade dos sintomas, podem parecer só ligeiramente atrasadas no desenvolvimento motor. Mas na SMA tipo 1 os sintomas são mais exuberantes. Os neuropediatras sabem que a doença existe, quais os sintomas e em que idade aparecem, pelo que estão alerta.
Isto é muito importante sobretudo agora, que temos esta terapêutica. Até há pouco tempo o tratamento era um tratamento de suporte multidisciplinar, em que a doença continuava a evoluir. Nesse sentido, agora que há tratamentos, mas que têm mesmo de ser aplicados antes de haver morte neuronal, há todo o interesse em alertar a comunidade médica para esta doença para que sejam feitos diagnósticos precoces. Muitas vezes, o que acontece é que as crianças demoram muito tempo a chegar ao neuropediatra.

HN – E como é que surge o Zolgensma, e de que forma atua no corpo?
NM – O Zolgensma é um medicamento inovador digno de ficção científica. Ele usa o capsídeo do adenovirus-9 (AAV 9) como mecanismo para entrar nos neurónios e introduzir o gene em falta. As células humanas fazem a endocitose do capsídeo do AAV-9, depois o capsídeo degrada-se dentro da célula e o material genético que vai lá dentro e que codifica a proteína forma um epissoma, que não faz parte do material cromossómico mas reside no núcleo. A partir desse momento, as células conseguem produzir a proteína em falta, garantindo, assim, a sobrevivência neuronal.
No fundo estamos a utilizar um mecanismo viral que sabemos que chega aos neurónios para levar o material genético em falta nas crianças com SMA.
Com este medicamento, as crianças envolvidas no estudo passaram de um mau prognóstico, que culminava na morte perto dos 2 anos de idade, para terem oportunidade de crescer, e alguns dos primeiros bebés tratados celebraram já o quinto aniversario. Em termos de desenho de ensaio clínico este é o melhor resultado de todos. Ao contrário de medicamentos que existem para a tensão arterial e diabetes em que as pessoas têm de tomar o mesmo medicamento ao longo de décadas para minimizar o risco de enfarte ou AVC, este medicamento traz uma diferença da noite para o dia.

HN – Os dados que li sobre o estudo referem números na ordem dos 60%-70% em relação a avanços por parte dos pacientes. Cerca de 60% dos pacientes do estudo tiveram avanços motores sob o efeito do Zolgenesma. Porque é que este medicamento só surte efeito em 60%-70% destas crianças?
NM – Quando fazemos um ensaio clínico há várias coisas que são monitorizadas – idealmente todas as possíveis. Para lhe dar uma ideia, no STR1VE-EU, a percentagem de crianças que sobreviveu livre de ventilação permanente (porque recorrer à ventilação era algo comum antes do tratamento) é para cima de 90%. Ou seja, enquanto as crianças não tratadas vão morrendo ou precisando de ventilação permanente, e quando chegam aos dois anos só 20% sobrevive; no estudo mais de 90% das crianças que participou e foi tratada sobrevive.
Outro aspeto que o estudo demonstra é a aquisição de “metas motoras” – chamemos-lhe assim: se a criança consegue caminhar, se se consegue sentar… e na SMA estas metas deixam de existir na mesma altura que uma criança normal as alcança: Se uma criança normal se senta aos seis meses, uma criança com SMA se calhar nunca se senta. Mas com tratamento passa a sentar-se aos sete meses. Ou seja, há um atraso para a aquisição dessas metas motoras, mas estas tornam-se possíveis.
Como tal é importante acompanhar o desenvolvimento destas crianças durante longos períodos. E o que se vê nos estudos de seguimento é que as metas motoras podem ser alcançadas, embora mais tardiamente. Assim, não é de estranhar que nem todas as crianças recuperem, ou que recuperem a velocidades diferentes, mas o fator mais importante é a gravidade da doença à data do tratamento com Zolgensma. Voltamos ao conceito original: se perderam muitos neurónios motores vão ter uma recuperação diferente. Portanto, uma criança gravemente debilitada na altura em que lhe é administrado o Zolgensma pode esperar uma recuperação mais lenta que outra criança praticamente assintomática. E nós, de facto, confirmámos isso através de outros estudos clínicos, um dos quais realizado em crianças antes de terem sintomas. Nesse estudo, o que se vê é que as metas motoras são muitas vezes alcançadas em alturas semelhantes às de uma criança sem a doença. Há uma diferença brutal entre tratar uma criança sem sintomas, ou com sintomas.

HN – Todas as crianças com SMA são elegíveis para o tratamento, ou existem restrições?
NM – Todos os medicamentos têm limitações que decorrem da maneira como o estudo foi feito. Algumas das limitações ao Zolgensma são, por exemplo, a presença de anticorpos para o vetor viral utilizado. O AAV-9 causa uma infeção assintomática, pelo que podemos ter anticorpos sem sabermos Se a criança tiver criado anticorpos, o que não é comum, o tratamento pode não ser eficaz. Depois existe uma série de outras condições. As crianças, para fazerem o tratamento, têm que realizar um ciclo de corticosteroides para minimizar a resposta autoimune ao tratamento. Nesse sentido, não podemos ter uma criança com qualquer infeção a fazer o tratamento.

HN – Ao fim ao cabo, estamos a falar de alguma forma de “edição genética”. A utilização deste medicamento não levanta questões éticas e morais?
NM – A pergunta é válida no sentido em que estamos, de facto, a proceder a uma alteração genética. Estas crianças, até há 7 anos atrás (a data do primeiro tratamento), não sobreviviam. Por outro lado, o problema seria se ao tratarmos a criança com o gene estaríamos a danificar alguma outra coisa, mas este material genético, quando é levado para o núcleo, não integra o cromossoma. A única coisa que aquele epissoma faz é produzir a proteína SMN1. Estamos, portanto, meramente a corrigir o défice que existe.

HN – Restam muitos anos de trabalho a acompanhar o desenvolvimento das crianças?
NM – Sim. Temos de perceber exatamente o que é que acontece. À partida, não há nada que consideremos que possa vir a correr mal a longo prazo. Temos é que perceber se os efeitos benéficos da terapêutica se mantêm para o resto da vida, e a única maneira de o fazer é através do acompanhamento. Neste momento, as crianças que temos acompanhado têm já entre sete a oito anos de idade, e estão a evoluir bem. Nada nos faz pensar que houve uma perda da eficácia da terapêutica, mas daqui a 40 anos… Não se sabe.
Felizmente, os neurónios são células que se dividem pouco. Por isso, após a integração do material genético não há razão para pensar que a célula vá deixar de produzir SMN1. Mas nestas coisas há que monitorizar e acompanhar.

Entrevista de João Marques/HN

 

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