Entrevista ao Professor Henrique Martins sobre a importância e o futuro da Telemedicina em Portugal: “O grande problema é a inversão do paradigma”

12/17/2020
HealthNews: Portugal é dos poucos países a nível mundial que tem um plano estratégico que contempla consultas à distância, mas os números de teleconsultas estavam a cair antes da pandemia […]

HealthNews: Portugal é dos poucos países a nível mundial que tem um plano estratégico que contempla consultas à distância, mas os números de teleconsultas estavam a cair antes da pandemia de Covid-19. O que lhe pergunto é em que situação foi este plano elaborado e porque é que estávamos a fazer cada vez menos consultas à distância?
Professor Henrique Martins: Eu não tenho a ideia de que estivéssemos a fazer cada vez menos consultas, pelo menos não tenho esses dados. O número de teleconsultas em Portugal, para o potencial do país e da tecnologia, de facto, era muito baixo. É um facto. E estes números eram baixos porque há um conjunto de resistências e de dificuldades. Houve um ano em que os números realmente baixaram, durante 2019. Mas, de facto, não há dúvida de que a situação da pandemia aumentou a necessidade exponencialmente, embora ela sempre lá estivesse porque em Portugal temos um problema de acesso às consultas. Há pessoas que esperam um ano e meio por uma consulta. 

HN: Mas porque é que Portugal elaborou este plano e quais eram os objetivos?
HM: O Plano Nacional Estratégico de Telesaúde vem resolver uma questão que julgo ser muito importante. É que a telesaúde em Portugal e muitos outros países tem uma história antiga com projetos experimentais. E o objetivo do plano era reforçar o que chamamos  a institucionalização da teleasaúde, ou seja, tornar a telesaúde numa coisa de rotina e numa prática que faça parte do Sistema Nacional de Saúde (SNS) e mesmo dos sistemas privados. 

O plano tem uma parte que é um enquadramento. Ele é uma revisão do que se fez no passado, o que se passa nos outros países… É quase mais um ponto de situação para depois então traçar linhas que vão desde a reorganização dos serviços, que têm que ser alterados para enquadrar a telesaúde, às regras de financiamento e de orientação clínica – como é que se faz isto bem feito – emitidas pela Direção geral de Saúde (DGS), e temos até despachos ministeriais que mandam utilizar a telesaúde em alguns contextos, nomeadamente no chamado telereastreio dermatológico. Daqui até ao pluripotencial, ou seja, o potencial da telesaúde nas múltiplas vertentes, estamos muito longe ainda. Daí a importância de um plano a quatro anos, para se perceber qual é o caminho e quais as grandes áreas em que é preciso apostar. Desde a realização dos serviços, o financiamento, a própria investigação em telesaúde…

HN: Um barómetro de Telesaúde e inteligência artificial apresentado pela Instituição Portuguesa dos Administradores Hospitalares, publicado em meados de 2019, revelou que 87% dos hospitais do SNS e mais de metade das instituições disponibilizavam teleconsultas, mas apenas 25% dos hospitais do SNS tinham programas de telemonitorização. Gostava primeiro de descortinar o que é a telemonitorização e o que é a teleconsulta.
HM: Teleconsulta, como o próprio nome indica, é uma consulta. Pode ser em tempo real ou um diferido. O que é uma teleconsulta em diferido? É quando o paciente envia, por exemplo no caso da dermatologia, uma fotografia da pele com um conjunto de comentários e, daí por umas horas, o dermatologista vai ver e dar uma opinião. Na dermatologia chamamos a isto o Programa de Telerastreio Dermatológico, que está institucionalizado por um despacho da tutela que manda fazer isto antes de qualquer consulta presencial com um dermatologista. O médico de família tem que enviar a fotografia primeiro, e depois o dermatologista olha para a fotografia e, no limite, diz que não é preciso ver o doente e recomenda uma terapêutica. Se for preciso, marca-se uma consulta. Na dermatologia esta questão evoluiu muito porque trata-se de uma especialidade muito visual, e começou  a perceber-se que a qualidade das fotografias com um simples IPhone é suficiente para triar a maior parte das situações e que a maior parte das consultas presenciais pode assim ser evitada. 

A telemonitorização é monitorizar à distância os parâmetros do organismo humano, como o peso, a tensão arterial pulsação, ritmo cardíaco, entre outras coisas, com equipamentos que estão em casa do doente ou num lar. No fundo, o doente está a transmitir eletronicamente um conjunto de dados que representam, para quem os sabe interpretar, alguma coisa sobre a sua saúde. Do outro lado está normalmente uma central de receção de dados que pode ter sere humanos ou ser mais sofisticada, com uma análise feita por algoritmos que depois acionam alertas. Ou seja, quando os dados excedem determinados limites o alerta dispara.

Muitas vezes as duas complementam-se, e quando se detetam alterações preocupantes em algum parâmetro, pode haver uma teleconsulta, ou mesmo uma deslocação para uma consulta presencial.

HN:E quanto aos números publicados no barómetro, que leitura faz?
HM: Os hospitais, fora e dentro da pandemia, já deviam estar todos a fazer telemonitorização. Não há nenhum hospital português que não tenha doentes crónicos respiratórios, cardíacos, vários, que não beneficiem de telemonitorização. 

Por exemplo, a Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC), que é uma doença muito disseminada com cerca de 110.000 doentes, pelo menos, a fazer oxigénio ou ventilação no domicílio, tem muitos doentes que beneficiariam de telemonitorização. Portanto, o facto de só haver um quarto dos hospitais que tem algum tipo de telemonitorização é francamente insuficiente e já o era antes da pandemia. 

Agora, se estes números se mantiverem no contexto de pandemia, então isso seria quase escandaloso, mas não sei se estes números se mantêm assim. Espero que não. Mas a realidade que sei é que  há muita resistência das instituições. Há um despacho da tutela, de março deste ano, que manda usar a telemonitorização, exceto quando não seja tecnicamente ou clinicamente possível. Ora, na maioria dos doentes isto é possível.

Face a este despacho da tutela, todos os hospitais deveriam ter já um programa de telemonitorização bem montado, tanto que há mecanismos de financiamento específicos para a telemonitorização. Portanto, os hospitais nem deveriam poder evocar a questão do financiamento, porque há financiamento específico para esta questão. É muito mais barato manter estes doentes em casa, sem virem aos cuidados de urgência e de internamento.

Há uma inércia de gestão por parte das equipas de gestão dos hospitais, que também não são assim tão grandes. Isto acontece porque talvez haja alguma falta de preparação destas equipas, que não conhecem bem como se monta um programa de telemonitorização. Se for um médico a dizer que sabe como se faz e quer fazer, eles talvez se sintam confortáveis, mas não se forem as equipas de gestão a implementar. Alguns não têm as skills necessárias para montar estes sistemas. 

Depois há outra questão, é que nesses 87% estão muitos telefonemas, e eu julgo que deveríamos começar a dividir as estatísticas entre teleconsultas só com telefone e teleconsultas com imagem. Porque se calhar, se formos só às teleconsultas com imagem, estas não ultrapassam os 25%.

HN: E como é que os doentes recebem a telemedicina? Eles estão dispostos a este tipo de consultas, ou há alguma resistência e estranheza? É que muitos são idosos que não se sentem, talvez, à vontade com as tecnologias necessárias.
HM: Posso dizer que isso é um mito. Primeiro porque o feedback dos doentes é muito positivo, depois porque eles rapidamente se habituam, e terceiro porque ninguém gosta de esperar três anos por uma consulta quando pode, ao fim de dois dias, falar com imagem com o médico. 

As pessoas são muito mais inteligentes do que às vezes achamos. Elas sabem fazer uma escolha entre uma coisa que não é a mesma, mas que é algo, e mostram a pele através de uma camara e falam um médico neurologista e explicam os sintomas em vez de estarem dois anos ao médico de família sem conseguirem marcar uma consulta. Estes dois anos não é um cenário hipotético. Estes números estão online.

Há uns anos atrás, quando lançámos a teledermatologia, em Bragança havia um tempo de espera de dois anos. Neste momento é de dois meses, ou semelhante. Portanto, as pessoas, sabendo isso, reagem muito positivamente às teleconsultas.

Depois há uma questão, sobretudo no Alentejo, que é a telemedicina feita com dois médicos. Um do lado do centro de saúde, ao lado do doente, e um outro do lado do hospital, que é o especialista. E aí os doentes adoram. Não gostam, eles adoram. E adoram porque são o centro de uma conversa entre dois médicos. E não só acham piada que aqueles técnicos de saúde estejam a falar sobre ele, mas também com ele. Isso é muito interessante porque eles percebem os termos e participam. Eu já vi isto.

HN: Mas estas consultas a três são uma minoria, não é verdade?
HM: Há poucos anos era a maioria. Agora já é uma minoria e acho que a tendência é que se mantenha assim. Mas foi assim que se começou em Portugal.

Existe a ideia de que os idosos estão sentados no sofá à frente de um telemóvel sem saber onde clicar, mas não foi assim que começou, até por razões tecnológicas. Há 10 anos ninguém tinha um smartphone e a maioria das pessoas não tinha em casa um portátil com camara. E, portanto, a maioria das vezes isto era feito com dois profissionais, um de cada lado. Só nos últimos cinco anos, sensivelmente, é que podemos dizer que se está a massificar a tecnologia que permite fazer isto em casa: microfones, software, câmaras… 

HN: Coloco-lhe esta pergunta, agora de forma direta, embora as suas respostas anteriores possam pintar aqui uma resposta. De que forma é que é que a telemedicina pode contribuir para ajudar doentes crónicos?
HM: A primeira coisa que temos de saber sobre uma pessoa com doença crónica é que ela não quer viver doente. Ela quer viver a sua vida da forma mais normal possível. Antes de ter sintomas já existem sinais que podem ser monitorizados, e por isso, quando telemonitorizamos estes doentes conseguimos detetar estas alterações e eu posso, por exemplo, ligar aos doentes pelo telefone ou fazer uma videochamada para perceber o que se passou. ‘Porque é que está mais pesado?’, ele diz-nos que teve umas jantaradas e por isso vamos ter que fazer dois dias mais diuréticos para desinchar as pernas. 

Estas situações que podem ser resolvidas com intervenções muito simples para os doentes com insuficiência cardíaca são mesmo muito comuns. Eu próprio vi muitos destes doentes na urgência do Amadora Sintra só porque comeram muita comida com muito sal no natal e ficaram com as pernas super inchadas… Estes doentes não precisam de ir ao hospital: nós sabemos que doenças eles têm e o que tomam. É só ajustar o tratamento e manter o contacto.

As teleconsultas permitem a mesma coisa mais esclarecer, por exemplo, dúvidas aos pacientes. Nas doenças mentais a teleconsulta é uma forma supereficiente de consultar os pacientes sem que tenham de ir ao hospital. Qual é a diferença entre falar numa camara ou ir ao hospital para ser ouvido? A única diferença é que a teleconsulta pode-se marcar de uma semana para a outra e no hospital demora três meses e quando o paciente lá chega já vai com pensamentos suicidas e já vez outros disparates. Já vi muitos doentes a darem entrada nas urgências com pensamentos suicidas e que tinham a consulta marcada, mas para dali a dois meses.

HN – Para terminar, peço-lhe que pratique uma ciência menos exata – futurologia. A telemedicina tem-se vindo a impor nos últimos meses à custa da Covid-19. Tendo Portugal este plano de teleconsultas e telemonitorização, com a agravante da pandemia, o que podemos esperar para o futuro da telemedicina?
HM – Eu defendo, e acho que vai acontecer, que a telessaúde em geral pode ter uma prática que deixe de ser excecional. Ou seja, esta tem que passar a ser  a páatica habitual para depois, se tiver que ser, a pessoa ir ao hospital. Eu acho que este é o futuro, mas não sei quantos anos demoraremos a chegar lá. Mas o paradigma tem que mudar e os doentes só devem ir ao hospital quando é mesmo necessário. Agora, temos que inverter o princípio para passar a ser ‘Não vão!’ e fazer tudo à distância. Se tiver que ser faz-se teleassistência, se tiver mesmo que ser vai lá uma equipa a casa, e se tiver mesmo que ser então o doente vai ao hospital. 

É como nos carros. Se houver um problema com o carro a meio de uma viagem vai telefonar. Se houver uma solução à distância, o centro da ACP vai tentar resolver o problema com base em perguntas e respostas, questões mais frequentes, acidentes mais habituais…  Se não funcionar, a segunda linha de resposta é uma carrinha com um mecânico para por o carro a andar para ir à oficina. Se não resultar, então segue o reboque. É exatamente esta a prática que deve ser adequada à medicina. 

Não percebo é porque e que são os mesmos médicos, administradores hospitalares e ministros, que não querem ir com o carro à oficina, não entendem que pegar num idoso de 90 anos a fazer hemodiálise e marcar para as 8h da manhã uma consulta de psicologia só para ele dizer que anda deprimido porque está a fazer hemodiálise e porque não vê os filhos há dois anos e agora com o Covid também não vai ver… Isto pode-se tratar à distância. O grande problema é a inversão do paradigma em que o doente é que vai ter com o médico, e não o contrário. Isto está errado. 

O paradigma vai mudar com ajuda do Covid, mas duvido que haja um antes e um depois suficientemente demarcado. No verão, quando a situação aligeirou, voltou tudo ao antigamente, a mesma coisa com as aulas e com o shopping online. Ainda é preciso fazer muita formação e alterar o paradigma. 

Entrevista de João Marques

 

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