Bernardo Mateiro Gomes Médico de Saúde Pública

Um calendário possível de pandemia

12/20/2020

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Um calendário possível de pandemia

20/12/2020 | Opinião

2020 foi um ano difícil. Por isso, não se deve perder a oportunidade de tentar sistematizar o que se passou e olhar para o mesmo sob diferentes perspetivas.

Janeiro começa com as notícias de uma nova doença na província de Hubei na China, com algumas incertezas associadas: seria uma zoonose de transmissão limitada entre humanos? Seria uma ameaça pandémica? Retrospectivamente, estarei entre os muitos cépticos iniciais em contraste com aqueles que reconheceram logo o padrão de disseminação análogo ao Sars-CoV original. Será, juntamente com fevereiro, mês do que podíamos chamar “fog of war”, perante um inimigo desconhecido. Uma metáfora extraída dos jogos de “real time strategy” e que traduz bem a densidade do nevoeiro de desconhecido e incerteza. Contudo, a meio do mês já não restavam dúvidas a quem olhava para a evidência disponível: a ameaça era real.

No início de fevereiro, sai um editorial na Acta Médica Portuguesa que criou polémica por afirmar que não estávamos preparados. Os autores foram criticados, mas tinham absoluta razão. Chamavam a atenção para aspectos que se viriam a revelar cruciais – a história far-lhes-á justiça. Para o futuro, o editorial termina com: “The 2019-nCoV epidemic is also a test to our ability to face a threat that will repeat itself over time. Each time, we should learn with our mistakes and be better prepared than before.

Vale a pena olhar a montante e para a razão da afirmação de impreparação. Entrámos em 2020 com uma reforma de saúde pública que ficou pelo caminho, por várias razões, das quais muitas estão também ligadas aos próprios serviços. A estrutura de serviços de saúde pública em Portugal oferece algumas vantagens, mas a burocracia, desadequação dos recursos, desatualização, desinvestimento e o distanciamento das funções que deveriam ser nobres sabotam a priori a estrutura desagregada e de proximidade. A pandemia também não perdoou minimamente questões relacionadas com a falta de controlo de infecção ou, infelizmente, como se veio a provar verdade, as fragilidades de prestação de cuidados em estabelecimentos residenciais para pessoas idosas. Outro aspecto-chave destacado no texto foi a necessidade de boa comunicação: acabou por ser possivelmente o ponto mais frágil de toda a gestão de pandemia. O débil enquadramento legal empurrou mais tarde o Governo para sucessivos estados de emergência: o problema também era jurídico.

Março. O final de fevereiro foi pontuado por múltiplas suspeitas do primeiro caso e terminado a 2 de março com a confirmação do primeiro caso em território nacional. Aqui, e noutros momentos, o Primeiro-Ministro protagoniza a comunicação necessária e assertiva: anuncia antecipadamente a inevitabilidade do primeiro e mais casos, terminando com o carrocel mediático de contínuos casos suspeitos. Março é também o mês das grandes decisões e provavelmente o ponto mais alto de gestão política. Perante o que se passa em Espanha e Itália, o primeiro surto em Vale do Sousa faz disparar os alarmes, os dias dos profissionais de saúde pública passam a não ter fim. De forma corajosa, as recomendações do Conselho Nacional de Saúde Pública não são acolhidas e, logo depois do fecho nacional de escolas, segue-se o inevitável estado de emergência. De meio de março a meio de abril, segue-se o grande confinamento, decisão que até hoje parece ter sido a mais correcta, sobretudo face aos nossos irmãos espanhóis e italianos.

Abril. O erro do deslumbramento e o problema crescente da comunicação. No início de abril já era claro que o pico tinha passado – estava na altura de preparar o desconfinamento. Infelizmente, era notório que nem todas as regiões estavam em pé de igualdade e que havia detecção heterogénea de casos: a sementeira infecciosa não detectada em Lisboa e Vale do Tejo (LVT) fez o seu caminho e veio provar que não estávamos perante nenhum “milagre português”. Tentámos chamar a atenção para o problema. Meses depois, e já de forma tardia perante o desenrolar da segunda onda, surge finalmente a estratificação de risco e os mapas públicos: a decisão acertada que permitiu navegar, ainda que de forma atribulada, a segunda onda em novembro.

Maio e junho. Os meses das hesitações e preparação para o turismo possível. A discussão das praias teve um caminho arenoso, que acabou por chegar a bom porto. Mediante a evidência inegável do não controlo regional de LVT, são criadas as condições necessárias para a resposta. São evidentes os contributos dos determinantes sociais para esta assimetria, mas também a incapacidade das estruturas existentes – a criação de gabinete de intervenção é o penso institucional encontrado para dar solução imediata ao problema e as equipes multidisciplinares vão de encontro às necessidades complexas da população afectada.

Julho e agosto. O resto do país acaba por atravessar uma fase de algum descanso enquanto LVT acaba por dar uma resposta bem-sucedida ao problema. Nestes meses residirão as “raízes do mal” do resto do ano. Enquanto se acaba por dar o nó à transmissão em LVT, existia uma necessidade evidente de reforço de equipas de rastreio de contactos, à imagem do que fizeram outros países, com rácios apertados. A necessidade de envolvimento alargado de estudantes de saúde era também uma evidência e que não foi devidamente explorada, desde o início, já ultrapassando os argumentos do custo exacerbado de mais profissionais e/ou a sua disponibilidade no mercado. Perdeu-se uma oportunidade da devida preparação de equipas para uma segunda onda. Outra raíz do mal: enquanto a meteorologia convidava a algum relaxamento e suprimia a sobrevivência do vírus, os eventos e a deslocação para dentro e fora do país foram semeando lentamente infecção.

Setembro e outubro. Os eventos continuaram: era evidente nos inquéritos epidemiológicos que a mensagem sobre a doença tinha deixado de passar – aniversários, festas, comunhões, jantares alargados. Estava em curso a base da segunda onda. A sua ascensão continuou e a percepção pública de risco era completamente desajustada – este caminho continua até à sinalização pública da explosão em Vale do Sousa em outubro e, finalmente, com os mapas de risco que, ao contrário do que ainda foi avançado, não promovem estigmatização, mas sim recrutam para a acção. Até aquele momento de sinalização, a maioria do país não tinha a percepção da gravidade.

Novembro. O pico da segunda onda é precedido também pelo testemunhar da acumulação crescente de doentes em cuidados intensivos e internamentos. Em particular, é apenas justo relembrar o heroísmo (e aqui não hesito em usar a expressão) dos profissionais de saúde do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa e dos Agrupamentos de Centros de Saúde associados. Espero sinceramente que lhes seja feita justiça nesta história da pandemia. A activação de recursos adicionais, junto das forças militares e outras, acaba por dar suporte às necessidades por atender, aludindo também à possibilidade de reforma que passa por uma maior proximidade entre saúde pública, protecção civil e militares.

Dezembro. A convivência com o planalto, a chegada das primeiras vacinas, as hesitações com o Natal e a antecipação da 3ª onda. No momento de escrita deste texto, sinto a divisão pública entre a esperança justificada de 2021 mas que será iniciada com um mês difícil resultante de descidas de temperatura e o aumento de convívio nas festas. É matemático. Falta saber a dimensão do problema. É também um mês muito curioso para observar as reacções políticas e públicas ao momento em que o Governo escolhe recorrer à responsabilidade individual para gerir a época natalícia. Não me consigo opor a esta opção. A gestão anímica da população faz-me hesitar perante medidas mais musculadas e, afinal, o que seria dito de uma opção de supressão mais autoritária do Natal? Que custo teria para a gestão contínua de medidas não farmacológicas de restrição e gestão de risco sobretudo ao longo do primeiro trimestre de 2021?

Tirando algum fanatismo (cada vez mais raro) que ainda não compreendeu que o não controlo da Covid-19 traria piores consequências para o sistema de saúde e para a economia, não podemos ignorar o impacto global das medidas de combate. Todas as ferramentas não invasivas de controlo da Covid-19 devem ser rapidamente mobilizadas no sentido de dar mais espaço a todos os outros problemas, mas também para tornar o nosso país rapidamente atractivo na competição pelo turismo do Verão de 2021, com todas as consequências económico-sociais no horizonte. Essa corrida começa agora e não temos desculpas.

Para além do provável maior obstáculo (Janeiro-Fevereiro) que falta para superar a pandemia, temos lições para finalmente aprender e um destino partilhado se queremos ter um país mais preparado e, consequentemente, mais atractivo para nós e para quem queremos receber.

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