Entrevista: Ricardo Fernandes sobre a introdução dos últimos tratamentos contra o VIH em Portugal: “Não podemos pagar qualquer preço, mas devemos ter acesso à inovação”

01/28/2021
Na luta contra o VIH-SIDA Portugal está alguns meses atrás dos países de referência, como os Estados Unidos e a Alemanha. Pelo menos é que nos conta Ricardo Fernandes, diretor […]

Na luta contra o VIH-SIDA Portugal está alguns meses atrás dos países de referência, como os Estados Unidos e a Alemanha. Pelo menos é que nos conta Ricardo Fernandes, diretor executivo e ativista do  Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT), fundado em 2001. O tratamento mais inovador no combate à infeção tem foi aprovado há poucos dias nos Estados Unidos e tem a grande vantagem de uma toma mensal. Consiste em duas injeções com os compostos ativos Cabotegravir e Rilpivirina, e é eficaz na eliminação da infeção, desde que tomado devidamente.

Para Ricardo Fernandes os atrasos na introdução de terapêuticas como esta em Portugal são um dano colateral naquilo que é uma aquisição responsável dos medicamentos por parte do Estado Português que sacrifica alguns meses pelo acesso a um preço mais competitivo.

HealthNews – Existem neste momento mais de uma dezena de opções no que toca a antirretrovirais disponíveis no mercado. Como é que se escolhe o antirretroviral certo para um paciente?

Ricardo Fernandes – Há várias coisas que se têm que ter em atenção. A primeira são as recomendações internacionais, fruto dos dados existente em relação ao fármaco com base nos ensaios clínicos realizados quer pela própria industria farmacêutica, quer por outros investigadores. Nessas recomendações, deixadas a cargo da European AIDS Treatment Society (EACS) na Europa, estão esclarecidos os medicamentos que devem ser usados para quem nunca foi sujeito a tratamento. Mas estas indicações clínicas também falam de fármacos de segunda linha, que podem ser administrados caso a primeira experiência de tratamento não tenha corrido bem. Normalmente as pessoas mudam de medicação devido a algum efeito secundário ou porque adquiriram resistência à medicação anterior. Esta é a primeira maneira de decidir.

Há uma segunda forma de decidir que fármaco aplicar, e tem que ver com o próprio doente. Há que perceber se a pessoa tem, ou não, outras condições de saúde. Porque há fármacos que podem entrar em conflito. E há que perceber também como a pessoa vive: os seus horários, as suas rotinas, a sua alimentação…

Por um lado há a evidência clínica, com base nas indicações europeias, por outro a saúde da pessoa, com base no doente e no seu estilo de vida. Feita esta avaliação, o médico fica com uma série de medicamentos ao seu dispor dos quais prescreve os mais disponíveis, os melhores e os mais baratos.

HN – Hoje em dia, se não estou em erro, existem antirretrovirais de toma a 15 dias. Fazem parte de uma categoria de antirretrovirais de última geração. Quais são algumas das caraterísticas destes medicamentos, com foco, talvez, nesta questão da toma mais espaçada no tempo?

RF – Neste momento, a 15 dias, não estou a ver. Mas existe um, que ainda não está em uso generalizado, que tem a caraterística de implicar uma toma mensal através de injeção. Não é propriamente um medicamento, mas sim um tratamento porque consiste em duas injeções. Ele é uma combinação, como aliás são todos os medicamentos para o VIH, de substâncias que consiste nos princípios ativos Cabotegravir e Rilpivirina

Este medicamento, que penso que seja aquele a que se refere, é de toma mensal, mas ainda não foi introduzido no mercado português. Uma das suas caraterísticas é realmente esta administração apenas uma vez ao mês através de injeção, que se torna bastante útil face à outra opção de toma diária de dois ou mais fármacos, normalmente até três. Obviamente que um medicamento mensal vem mudar este paradigma, e tendo um perfil de segurança e de tolerabilidade semelhante ou mesmo melhor do que os medicamentos atuais, então ainda mais confortável ele se torna para as pessoas.

O perfil dos medicamentos atuais implica efeitos secundários em todos, sobretudo a médio e longo prazo. Mas é preciso que estes efeitos secundários sejam os menores possíveis e que não interfiram com a vida da pessoa, para que possa viver uma vida normal. Neste momento, no mundo e em Portugal temos este tipo de medicações que permitem às pessoas fazerem a sua vida normalmente, sem grandes efeitos secundários. Este novo medicamento, sem dúvida, não estará abaixo dos outros nesse sentido e melhor até, permitirá a alguns aderir ainda melhor à medicação. Isso é algo que terá que ser estudado depois de estar em uso mas, na teoria, torna mais difícil o doente esquecer-se de tomar o medicamento. É mais fácil esquecer de tomar um medicamento diário do que uma injeção mensal devidamente agendada. Portanto, a adesão à terapêutica poderá ser maior com este novo fármaco.

Por outro lado, não nos podemos esquecer que, para além dos efeitos secundários, existe a resistência às medicações. A resistência muitas vezes advém de problemas de adesão. Ou seja, quando as pessoas não tomam a medicação da forma que ela foi prescrita. Estamos a falar de esquecimento da toma ou mesmo de uma toma em horários diferentes dos combinados. A injeção permite contornar esse tipo de questões.

HN – Disse que estas injeções ainda não estão disponíveis em Portugal. Pergunto-lhe porquê e se já estão disponíveis noutros países. 

RF – Em Portugal está em fase de negociação. Ou seja, logo que esteja aprovado, como já vamos em fase de negociação, provavelmente ficará disponível em Portugal, pelo que está para muito breve.

Quanto à utilização, creio que o tratamento ainda não está disponível nem em Portugal nem noutros países da Europa. Só como acesso compassivo a pessoas que, de facto, precisam deste tratamento e que são autorizadas a fazê-lo. Em Portugal temos algumas pessoas nessa situação, cerca de uma ou duas. Mas ressalto que este tratamento ainda não está no mercado. Ele foi aprovado recentemente nos EUA, pelo que deverá estar para breve a aprovação pela EMA na Europa.

HN – Este é um processo do qual o GAT fez parte? 

RF – Este é sobretudo um processo da indústria com o regulador, que é o INFARMED.  Nós podemos ser chamados pelo INFARMED para dar a nossa opinião, o INFARMED tem essa capacidade e já aconteceu no passado, embora não seja muito frequente. Gostávamos que fosse mais frequente até. Mas poderemos ser consultados também pela própria indústria no sentido de perceberem qual é o nosso interesse em determinado fármaco ou como gostaríamos que ele fosse usado, enquanto representantes das pessoas que vivem com esta infeção.

HN – No caso dos tratamentos para o VIH-SIDA, qual tem sido a resposta de Portugal em termos de timmings? Temos acompanhado os países de referência na comercialização dos medicamentos?

RF – Portugal tem, normalmente, alguns meses de atraso na comercialização do medicamento, quando não chega a ser um ano. Isto não acontece necessariamente de forma diferente noutros países de referência. Estes atrasos estão relacionados com a burocracia e negociação entre o INFARMED e a indústria que decidem quem é o público-alvo, quais as quantidades que vão ser utilizadas e que preços vão ser praticados. Porque é importante percebermos que Portugal não é um país rico como alguns dos tais países de referência, e portanto não podemos pagar qualquer preço, mas devemos ter acesso à inovação. E, por isso, as coisas têm que ser negociadas para que exista aqui uma situação benéfica para ambas as partes: para a indústria que espera obter lucro e para o Estado, que tem que pagar um montante justo e confortável à sua “bolsa” para tratar todos os que precisam deste medicamento. Se o medicamento tiver um preço muito alto, mesmo que seja introduzido no mercado muito cedo, provavelmente não chega a quem precisa dele. Portanto, por muito que gostássemos que a negociação fosse mais rápida ela, muitas vezes, ajuda a que, de facto, o preço possa ser o confortável para o Estado e contribuintes possam pagar o tratamento com acesso a todos.

Entrevista de João Ruas Marques
Foto: Gonçalo Borges Dias

 

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