Carla Soares: “Eu que nunca imaginei que ficaria infetada vi coisas horríveis no internamento”

02/10/2021
Desespero, dor, medo e episódios traumatizantes marcaram as primeiras três semanas do ano de Carla Soares, 48 anos, sobrevivente da Covid-19. Com muita dificuldade, devido às sequelas respiratórias provocadas pelo vírus, Carla denuncia a negligência do SNS que, num momento de grande vulnerabilidade, a forçou a esperar mais de 12 horas para receber atendimento hospitalar e onde a “única coisa que me fizeram foi darem-me dois comprimidos de paracetamol para me baixarem a febre”. Longe de imaginar que iria contrair a doença, a vida da agente imobiliária passou a ser condicionada pelas sequelas da Covid-19.

HealthNews (HN)- Em que momento suspeitou que poderia ter contraído o vírus?

Carla Soares (CS)- O primeiro sintoma que tive foi muito frio. Quando chegava a casa ligava os aquecedores, vestia o pijama e por cima o roupão, dormia com lençóis térmicos e ainda assim sentia muito frio. Depois, comecei a ter febre, a sentir dores no corpo e foi a partir daí que suspeitei que poderia ter contraído o vírus numa viagem que fizera há pouco à Suíça.

Vivo sozinha e sempre tive muito cuidado por causa de um enfisema pulmonar que tenho.

HN- Como evoluíram estes sintomas?

CS- Comecei a ter diarreia, dores no corpo e a ter espasmos no estômago. Sentia muita dor na zona dos rins. Devido ao frio os meus músculos começaram a contrair. Essas contraturas musculares provocavam-me dores horríveis. Só perdi o olfato e o paladar duas semanas depois.

HN- Quando é que entra em contacto com as autoridades de saúde?

CS- Vim da Suíça dia 04 de janeiro, segunda-feira, à noite. Comecei com frio no dia seguinte à noite. No final da semana fui trabalhar. Fui mostrar um imóvel a uns clientes e eles convidaram-me para almoçar e eu até lhes disse que tinha muito gosto, mas sentia que estava mesmo a ficar doente e fiquei preocupada. Vim para casa e fui ficando cada vez pior. Nessa noite tive espasmos no estômago; contorcia-me toda na cama.

Tentei ligar várias vezes para a Saúde 24 e nunca me atenderam. Só às 6h00 ou 7h00 de manhã do dia seguinte é que me atenderam e mandaram-me logo para o hospital. Fui para o Hospital Amadora-Sinta e passado três horas de espera fiquei a saber que ainda tinha um tempo estimado de espera de mais 14 horas. Acabei por abandonar o hospital e fui para o Hospital CUF de Cascais, onde me marcaram logo o teste. Como era sábado disseram que só deveria receber o resultado na segunda-feira, mas a verdade é que no domingo logo de manhã recebi uma mensagem com o resultado positivo.

HN- Teve algum acompanhamento por parte do centro de saúde?

CS- Depois saber que estava infetada falei com a Saúde 24. Entretanto o próprio hospital também entrou em contacto com o centro de saúde de Cascais e ligavam-me constantemente. No entanto, porque tinha mudado de morada, teve de ser o centro de saúde da Amadora a dar continuidade. Foram impecáveis. Tive um atendimento fantástico. O meu médico de família telefonava-me todos os dias. Havia uma plataforma online onde era obrigada a fazer o registo da minha temperatura corporal e dos meus sintomas. Íamos sempre falando e se necessário ajustava a minha medicação.

HN- Que medicamentos teve de tomar durante o tratamento?

CS- Os iniciais foram os básicos: bem-u-ron e ibuprofeno. Depois tive de começar a fazer um glucocorticóide derivado da hidrocortisona (tínha de tomar dois comprimidos por dia) que me fez inchar… Tinha ainda o ventilan-inalador, um inalador que utilizava sempre que estava com falta de ar durante o dia. Tomei ainda omeprazol para o estômago porque estava a tomar uma medicação muito forte. Tomei ainda um antibiótico indicado para problemas respiratórios. Fiz também um medicamento utilizado no tratamento da asma em adultos para quando estava aflita durante a noite.

HN- Em algum momento sentiu que não estava a receber o acompanhamento que necessitava?

CS- Um dia estava aflita a falar com o meu filho ao telefone e percebi que estava com uma falta de ar incrível. Telefonou para o INEM e fui parar ao Hospital São Francisco Xavier, onde ninguém me fez rigorosamente nada. Estive lá mais de 12 horas e a única coisa que me fizeram foi darem-me dois comprimidos de paracetamol para me baixarem a febre. Não aguentava mais com o frio e com a fome. Estavam quatro graus e estávamos todos na rua. Havia uma desorganização total e ao fim de muito tempo é que nos disseram que nos podíamos dirigir para um espaço mais quente. Eram três da manhã e continuava sem ser atendida e acabei por apanhar um uber e ir para casa.

Passados dois ou três dias entrei em contacto com uma pneumologista que, depois de eu relatar os meus sintomas disse-me que devia chamar imediatamente uma ambulância e ir para o Hospital de São José. Todo o corpo clínico foi extremamente responsável e muito cuidadoso. Viram o estado em que estava e arranjaram-me logo um espaço dentro do covidário. Fizeram-me análises ao sangue, um raio x ao tórax… etc.

HN- Qual o momento mais difícil que viveu no hospital?

CS- Eu que nunca imaginei que ficaria infetada vi coisas horríveis no internamento. Fiquei muito desconfortável… É uma experiência que marca. Achamos que estamos mal, mas olhamos para o lado e vemos que há alguém que está pior do que nós. Vi pessoas a serem ventiladas, outras a gemer, ouvia o barulho da garganta, dos fluidos, das máquinas a trabalhar… São episódios que não são agradáveis de lembrar. Assisti a estas coisas e deram-me imensa força. Nos momentos de falta de ar, que é muito sufocante, é necessário que a pessoa consiga ter calma, caso contrário tem de se induzir o coma. Muitas vezes falava comigo própria e pensava “Carla tem calma”. Felizmente consegui lidar com essa falta de ar.

Fiquei internada apenas um dia. O próprio hospital trouxe-me a casa numa ambulância. Desinfetaram-me toda e tiveram todos os cuidados. Foi um trabalho excelente destes profissionais de saúde.

HN- Agora que teve alta e que ultrapassou a doença, que tipo de sequelas enfrenta?

CS- Um cansaço extremo. A recuperação é muito lenta. Antes não tinha forças para andar e agora já consigo. Estou a falar consigo e fico cansada. Como e fico cansada, até a mastigar me canso… Às vezes tenho de parar. Ainda tenho de esperar para ver que outras sequelas me vão ficar. Sei que o vírus me atacou as artérias coronárias. A parte pulmonar…. Vamos ver…

HN- Que mensagem gostaria de deixar?

CS- A doença tem várias componentes e nenhuma é agradável, mas a componente emocional tem um forte impacto. A doença pode arrasar as pessoas emocionalmente. Tive mais de três semanas fechada em casa e não podia ter contacto com ninguém, apenas com os médicos. Não podia ter a minha família e isso mexe muito connosco.

A mensagem que quero passar é que as pessoas fiquem em casa e oiçam o que os nossos dirigentes dizem. Não é uma gripe. Vi um senhor que teve de levar duas injeções na barriga porque estava a criar coágulos no sangue e a ficar com problemas no fígado. Portanto, não é uma constipação.

Entrevista por Vaishaly Camões

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