Entrevista Manuel de Carvalho Rodrigues: “Mortalidade por doença cardiocerebrovascular está a aumentar”

1 de Março 2021

A SPH teve um papel importante na revogação do Despacho governamental que excluía os hipertensos e diabéticos dos grupos de risco para a Covid-19 e que, portanto, lhes retirava a possibilidade de justificarem as faltas ao trabalho caso não pudessem estar em regime de teletrabalho ou outro.

 Em Portugal, “continuamos a morrer principalmente de doença cardiocerebrovascular. E, para essa, já temos tratamento”, diz Manuel de Carvalho Rodrigues, cardiologista do Hospital Pêro da Covilhã. “Não é legítimo abandonar, afrouxar o tratamento ou o cuidado com os doentes”.

HealthNews – A hipertensão associa-se normalmente a outros fatores que contribuem para o aumento do risco cardiovascular global?
Prof. Manuel de Carvalho Rodrigues – Essa é, de facto, uma realidade. Na maioria dos doentes, coexistem pelo menos dois fatores de risco. Esta coexistência depende muito da sua prevalência na população. Nos portugueses, a prevalência da hipertensão é de 42% e a da dislipidémia é de 60%. Já a prevalência de diabetes é um pouco menor, situando-se entre 12 a 15%.

Sempre que a mesma pessoa apresenta mais do que um fator de risco, o risco global cardiovascular aumenta. Não de acordo com a soma aritmética dos fatores de risco, mas de uma forma exponencial.

 

O estudo sobre “Prevalência de fatores de risco cardiovascular e outras comorbilidades em doentes com hipertensão arterial assistidos nos Cuidados de Saúde Primários” (PRECISE), revelou que, globalmente, 81,7% dos hipertensos apresentavam três ou mais fatores de risco cardiovascular concomitantes. Qual é a sua visão sobre a atuação da Medicina Geral e Familiar neste domínio?
O estudo “PRECISE”, na sua essência, visava identificar a prevalência de fatores de risco, também para se perceber qual a necessidade de adaptar os cuidados de saúde primários (CSP) em termos de disponibilidade de tempo e de disciplinas, embora isso depois não tenha sido transposto para a prática.

Sempre afirmei que estes doentes devem estar, preferencialmente, nos cuidados de saúde primários. Portanto, é para os CSP que devemos dirigir a nossa atenção, no sentido de despertar na Medicina Geral e Familiar uma atenção crescente.

Quando estes doentes chegam aos hospitais, já têm a doença estabelecida, por vezes muito avançada, de difícil controlo, e já se perdeu muito tempo. Por isso, cada vez mais, é preciso ter a noção de que é na Medicina Geral e Familiar que há que criar o nosso foco principal, no sentido de melhorar ainda mais o controlo da hipertensão.

Quando digo “melhorar ainda mais” é porque já muito fazem, e bem. Mas é preciso melhorar ainda mais, se possível, esse cuidado. Até porque uma hipertensão não tratada ou mal controlada é igual em termos de consequências.

 

Que desafios se colocam ao nível do tratamento? Quais são as recomendações da Sociedade Portuguesa de Hipertensão?
Não temos recomendações especiais. Eu diria que basta estar atento às “guidelines” do tratamento da hipertensão arterial de 2018, porque é assim que, cada vez mais, devemos tratar os nossos doentes.

As recomendações são muito claras : para a esmagadora maioria dos doentes o início do tratamento deve ser feito, pelo menos, com uma dupla associação de medicamentos. Infelizmente, isso ainda nem sempre se faz, mas é um passo importante. Aliás, um estudo efetuado na Região Autónoma da Madeira (CONTROL-RAM) revelou que o número de doentes tratados e controlados era superior ao do Continente, apesar de o risco cardiovascular dos doentes da Região Autónoma ser superior ao dos doentes do território Continental. O apoio que o governo regional da Madeira proporciona, em termos da comparticipação de medicamentos com dois ou mais fármacos associados, reflete-se num uso mais generalizado, que permite um maior controlo da hipertensão.

Repare-se que o estudo na CONTROL-RAM é anterior às “guidelines” de 2018. Podemos quase dizer que antevimos aquilo que as “guidelines” viriam a recomendar: uma associação fixa de, pelo menos, duas substâncias num mesmo comprimido. A monoterapia constitui a exceção.

Há ainda alguma resistência a essa abordagem por parte da classe médica?
Esse é um desafio que devemos prosseguir: fazer sentir na Medicina Geral e Familiar que é seguro e muito eficaz tratar os doentes desta maneira. Não faz sentido haver receios ou temores de qualquer tipo.

É eficaz, melhora muito o controlo dos doentes e, com isso, evitamos as consequências da doença.

Apesar da facilidade com que é detetada, um quarto das pessoas hipertensas não sabe que o são…
A facilidade não pode ser maior! Mas como é muito “silenciosa”, para a detetar teremos de medir a pressão arterial com regularidade. É um hábito que ainda não se adquiriu por completo, mas é preciso continuar a insistir na sua necessidade e utilidade!

Considera que a pandemia de Covid-19 poderá ser uma chamada de atenção para o peso das comorbilidades, como a hipertensão, uma vez que aumentam o risco em caso de infeção pelo SARS-CoV-2?
Sim, agora, com a Covid-19, fala-se muito nisso. Mas a verdade é que já determinava um número verdadeiramente assombroso e até difícil de explicar, quase obsceno, de acidentes vasculares cerebrais em pessoas que não sabiam que eram hipertensas ou, se o sabiam, não tinham qualquer tipo de iniciativa de, junto dos seus médicos, tentarem o tratamento e o controlo da hipertensão arterial.

É bom que se perceba que já existiam, e continuam a existir, doentes que sem qualquer relação com a Covid-19, por desconhecimento ou por incúria, continuam a chegar aos hospitais com a consequência mais grave mas também mais habitual: o acidente vascular cerebral (AVC).

Claro que agora também há algum receio, algum retardamento e até alguma dificuldade no acesso, o que faz com que estejamos a ver números que nos últimos anos já não existiam.

Se olharmos para as estatísticas oficiais, a tendência na mortalidade por doença cardiocerebrovascular está a aumentar, quando há muitos e muitos anos, vinha a baixar consistentemente.

Isto, não sei bem porquê – as razões podem ser múltiplas – não tem sido falado. Mas, em Portugal, continuamos a morrer principalmente de doença cardiocerebrovascular. E para essa, já temos tratamento. E para essa, não é legítimo abandonar ou afrouxar o tratamento ou o cuidado com os doentes.

Adelaide Oliveira

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

SNE saúda pedido de relatório sobre mudanças implementadas na Saúde

O Sindicato Nacional dos Enfermeiros (SNE) afirmou, esta sexta-feira, que vê com “bons olhos” o despacho, emitido pela ministra da Saúde, que solicita à Direção-Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) um relatório do estado atual das mudanças implementadas desde o início de atividade da entidade.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights