Especialistas admitem fatores biológicos na maior gravidade da doença em homens

15 de Março 2021

A dimensão de fatores biológicos e imunológicos pode contribuir para a maior gravidade e letalidade da Covid-19 nos homens em relação às mulheres em Portugal e na generalidade dos países, admitem alguns especialistas consultados pela Lusa.

Na véspera de se assinalar um ano do primeiro óbito de um cidadão português devido à doença provocada pelo novo coronavírus, o país mantém desde o início da pandemia uma tendência sólida de maior mortalidade no sexo masculino, apesar de até ser das nações a nível europeu onde se regista um maior equilíbrio. Entre as 16.684 vítimas mortais da Covid-19 contabilizadas até domingo, 8.748 eram homens (52,43%) e 7.936 (47,57%) eram mulheres.

Porém, estes dados ganham outra relevância enquadrados nos números de casos confirmados (814.257) até à data, em que o sexo masculino representa somente 45,27% (368.627) das infeções e o sexo feminino (445.345) constitui 54,69%, acrescendo ainda 0,04% de casos de sexo desconhecido (285 em termos absolutos), segundo os dados da Direção-Geral da Saúde.

“A primeira coisa que temos de ver em termos de vigilância epidemiológica é se há subdeteção nos homens e há muitas coisas a apontar para isso: provavelmente, os homens têm menos comportamento preventivo de contacto com os serviços de saúde e o limite para um homem fazer um teste é mais alto do que numa mulher. Há uma questão comportamental”, começa por explicar o médico de saúde pública Vasco Ricoca Peixoto.

Contudo, para o investigador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), independentemente dos comportamentos individuais e sociais, do “viés de seleção nos casos” e das comorbilidades que possam existir com maior incidência nos homens, “parece haver algo biológico” que influencie também a “variabilidade muito grande” na resposta desenvolvida pelo sistema imunitário ao vírus SARS-CoV-2.

“Há a questão biológica por trás disso, não é uma questão meramente social. Há quem fale na resposta imunológica e há quem advogue que tenha a ver com o nível de expressão dos recetores da Covid-19, mas não me parece ser meramente uma questão social”, afirma a médica intensivista Susana Fernandes, do Hospital de Santa Maria.

Segundo a também diretora da clínica universitária de medicina intensiva na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, após um ano de investigação mundial sobre o vírus, é possível depreender hoje que a sua atuação “passa muito mais pela influência de comorbilidades de risco mais prevalentes em homens e pelos efeitos biológicos prévios” do que apenas por diferenças comportamentais.

Já para a diretora do Laboratório de Imunologia Clínica no Instituto de Medicina Molecular, Ana Espada de Sousa, que, em abril de 2020, manifestara à Lusa alguma cautela na análise de uma resposta imunitária diversa entre homens e mulheres a este novo coronavírus, face à escassa informação então disponível, considera haver agora evidência imunológica que sustente um comportamento do vírus diferente por género.

“Há alguns estudos que mostram níveis diferentes de anticorpos de acordo com género, mas é preciso ter em conta outros fatores, como a gravidade da doença”, nota a investigadora, sem deixar de salientar, igualmente, o peso de questões fisiológicas relacionadas com o recetor do vírus, o ACE2: “Há vários estudos a mostrar impacto de androgénios na expressão dos recetores do vírus, por exemplo”.

Sublinhando a complexidade do sistema imunitário e as diferenças no funcionamento a este nível entre homens e mulheres, Vasco Ricoca Peixoto indica algumas hipóteses de análise do comportamento da infeção pela velocidade e forma como é montada uma resposta, num contexto em que interagem razões comportamentais, comorbilidades de risco já existentes e também questões de natureza biológica e imunitária.

“Há sistemas imunitários que demoram mais a detetar o vírus como inimigo, porque é preciso vários estímulos de lesão celular concomitantes para ativar o sistema imunitário e este dizer que o vírus é mesmo um inimigo”, refere, sem excluir aspetos de natureza hormonal, apesar da pouca informação disponível: “Os homens com ‘outcomes’ mais graves tinham níveis de testosterona mais baixos, mas, por outro lado, não se sabe se a infeção mais grave pode levar a essa consequência, ou seja, ser uma consequência e não uma causa”.

Susana Fernandes revela ser “difícil” distinguir o efeito da componente hormonal em termos imunitários dos efeitos dos fatores de risco para a Covid-19, como hipertensão arterial, diabetes ou doenças cardiovasculares, que têm maior expressão na população masculina. Todavia, não deixa de pensar que a resposta imunológica distinta entre géneros se possa traduzir posteriormente num risco acrescido de infeções graves em homens.

“Provavelmente, a doença grave é muito mais de cariz imunológico do que propriamente induzida pelo vírus, embora isso também seja comum a outro tipo de patologias, ou seja: às vezes, há doença grave que não é pelo agente em si mesmo, mas é pela resposta do hospedeiro ao agente e isso nós já sabíamos de outras infeções”, afirma a intensivista e investigadora, que lembra ainda que “este vírus não é novo em todos os aspetos”.

Questionada se as evidências apontam mais para razões de natureza social e comportamental ou para uma maior expressão de certas comorbilidades de risco nos homens, Ana Espada de Sousa assume que “as comorbilidades têm, com certeza, um papel muito importante, embora os outros tipos de fatores estejam associados”.

“Para avaliar isto é interessante comparar prevalência de infeção com prevalência de doença grave e internamento em unidades de cuidados intensivos com mortalidade”, destaca, numa análise feita e comprovada na “linha da frente” por Susana Fernandes: “Na evolução para doença crítica da Covid-19 há claramente uma prevalência de homens, cerca de 70% dos doentes admitidos em cuidados intensivos são homens”.

Em Portugal, morreram 16.684 pessoas dos 814.257 casos de infeção confirmados, de acordo com o boletim mais recente da Direção-Geral da Saúde.

LUSA/HN

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