António de Sousa Uva Médico do Trabalho, Imunoalergologista e Professor Catedrático de Saúde Ocupacional da ENSP (UNL)

Saúde e Trabalho: será a transdisciplinaridade inevitável?

04/19/2021

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Saúde e Trabalho: será a transdisciplinaridade inevitável?

19/04/2021 | Opinião

A actuação da Medicina do Trabalho e também da Segurança, Higiene e Saúde dos Trabalhadores nos Locais de Trabalho (SHSTLT), também denominada Saúde Ocupacional ou Saúde e Segurança do Trabalho (SST), que inclui a Medicina do Trabalho e muitas outras disciplinas (entre outras, a Psicologia do Trabalho, a Enfermagem do Trabalho, a Sociologia do Trabalho, a Segurança do Trabalho, a Higiene do Trabalho e a Ergonomia) centra-se, essencialmente, na atividade de trabalho e nas suas condicionantes. A atividade de trabalho, nas condições de trabalho concretas em que se desenvolve, tem sempre uma elevada complexidade e exige (ou deveria exigir), também sempre, o concurso de vários saberes e de diversas áreas de conhecimento.

Os efeitos negativos para a saúde estão muito para além da ocorrência dos acidentes de trabalho, que domina a atenção de todos em matéria de SHSTLT, abrangendo um importante leque de situações que, para além das doenças profissionais e das doenças relacionadas (e agravadas) pelo trabalho, abrangem ainda inúmeros aspetos relativos a relações ainda mal conhecidas, como é o caso da exposição a novas substâncias químicas, ou as potenciais repercussões para a saúde de novos métodos de trabalho, como é o exemplo da “uberização” ou do teletrabalho e, ainda, a aspetos incompletamente compreendidos como as algias (por exemplo as cefaleias, as raquialgias ou as lombalgias), a fadiga ou a carga de trabalho.

A perspetiva dominante é a de que os aspetos da Saúde Ocupacional pertencem à área da saúde (em sentido restrito e “popular”, leia-se “Medicina”) a quem se recorre quando é absolutamente indispensável (estar doente …). Por outro lado, as áreas de conhecimento centradas essencialmente no ambiente (de trabalho), na actualidade, actuam muitas vezes hipovalorizando os aspectos individuais ou, quanto muito, reportando-os a uma abstracção do denominado “trabalhador médio”.

Tal presunção, independentemente do modelo de organização dos serviços de prestação de Saúde e Segurança do Trabalho (SST), expressa-se, por exemplo, na opção dominante em intervenções isoladas de cada um dos grupos de técnicos. Esse “isolamento” entre as várias abordagens é, por certo, muito penalizador de qualquer resultado que se pretenda, visando a proteção e a promoção da saúde das pessoas que trabalham que é, recordemo-nos, a razão da existência da SHSTLT. Só esse objetivo tornaria, por si só, indispensável uma abordagem “integrada” do diagnóstico e gestão das situações de risco em SST, independentemente das modalidades de organização dessas mesmas atividades.

O resultado final da interdisciplinaridade na avaliação e na gestão dos riscos profissionais é, por certo, mais rigoroso e eficaz que o resultado das abordagens sectoriais das diversas disciplinas (já referidas) isoladamente, numa perspetiva de antecipação de potenciais eventos adversos (a tão falada “prevenção”).

De facto, as situações de risco profissional envolvem toda a complexidade inerente ao indivíduo, às condições de trabalho, à atividade desenvolvida e às características das organizações onde ocorrem e, por isso, devem integrar as especificidades e as competências próprias das diversas áreas disciplinares que possam, de alguma forma, contribuir para a prevenção de efeitos adversos, senão mesmo para a promoção de situações de trabalho que possam influenciar positivamente a saúde de quem trabalha. 

O resultado final dessa “integração”, que decorre da interdisciplinaridade e do pluriprofissionalismo, na avaliação e na gestão dos riscos profissionais é, sem margem para dúvidas, mais rigoroso e eficaz que o resultado das abordagens sectoriais das diversas disciplinas atuando isoladamente, uma vez que o que está em causa é a saúde (e a segurança) do trabalhador que é una, indivisível e não pode ser refém de interesses corporativos de qualquer uma das diversas disciplinas intervenientes, independentemente do protagonismo e valorização social de cada uma.

O trabalhador deve, portanto, ser sempre o centro das preocupações de quem se dedica ao estudo das relações trabalho/saúde (doença) em qualquer área científica da SHSTLT, devendo ser respeitado na sua “individualidade” e, em geral, na sua dignidade como ser humano e como trabalhador. A intervenção transdisciplinar da SST não é, pelo que fica dito, um “estilo” de intervenção, mas sim o produto da necessidade dessa abordagem em função da referida complexidade das situações de trabalho, se a perspetiva de intervenção se centrar, de facto e principalmente, na proteção da saúde de quem trabalha. Dito de outra forma, a transdisciplinaridade em Saúde Ocupacional é uma necessidade e não uma “opção”.

1 Comment

  1. Mário Durval

    Caro António
    Muito bem explicado. Infelizmente nem sempre se entende a necessidade da transdisciplinaridade e vendem-se atos avulsos com nome de Saúde ocupacional.
    Fazes muito bem em pugnar pelos princípios.
    Mário Durval

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