Ana Paula Fidalgo: “A HTA é um gigantesco problema de saúde pública”

5 de Maio 2021

Paula Fidalgo Especialista em Medicina Interna, coordenadora da Unidade de AVC do Centro Hospitalar Universitário do Algarve e membro dos órgãos sociais da Sociedade Portuguesa do AVC.

A hipertensão arterial “contribui para quase todos os tipos de AVC, com ênfase particular para o AVC hemorrágico, onde existe uma associação causa-efeito muito mais evidente”, explica Ana Paula Fidalgo, especialista em Medicina Interna, coordenadora da Unidade de AVC do Centro Hospitalar Universitário do Algarve e membro dos órgãos sociais da Sociedade Portuguesa do AVC.

HealthNews (HN)- A hipertensão arterial é o principal fator de risco modificável para as doenças cerebrovasculares?

Ana Paula Fidalgo (APF) – A hipertensão arterial é um gigantesco problema de saúde pública e é efetivamente o principal fator de risco modificável para as doenças cerebrovasculares. Sabemos que quase metade dos portugueses hipertensos não sabe que o é. O desenvolvimento da hipertensão arterial pode em grande parte evitar-se, mantendo uma atividade física regular, diminuindo os níveis de sal, adotando uma alimentação apropriada, prevenindo a obesidade, moderando o consumo de álcool e cessando o tabagismo.

É também indispensável que os doentes sejam acompanhados regularmente por profissionais de saúde, de modo a reforçar a adesão terapêutica.

HN – Cerca de 80% dos AVC estão relacionados com a hipertensão?

APF – A deteção da hipertensão arterial pode evitar a maioria dos AVC. A hipertensão arterial é predominantemente uma condição assintomática. No entanto, ela pode ser facilmente detetada em programas de rastreio populacionais estruturados ou em consultas de seguimento regular nos Cuidados de Saúde Primários.

A hipertensão é um fator que contribui para quase todos os tipos de AVC, com ênfase particular para o AVC hemorrágico, onde existe uma associação causa-efeito muito mais evidente. O diagnóstico e tratamento precoces são fulcrais e essa experiência está bem documentada no nosso país. No Porto, a equipa do Professor Manuel Pereira mostrou uma redução da incidência de AVC em 23% de 1998-2000 para 2009-2011. Esse feito ocorreu principalmente devido a um maior controlo da hipertensão arterial na população.

HN – O cérebro é, em geral, o órgão que mais precocemente e mais intensamente sofre as consequências da hipertensão?

APF – O cérebro é um dos órgãos que mais sofre as consequências da hipertensão arterial ao longo do tempo. Além do AVC, a hipertensão arterial causa lesão progressiva silenciosa estrutural e funcional cerebral que pode determinar deterioração cognitiva precoce, ou ainda “demência vascular”. Vários estudos clínicos e epidemiológicos demonstram que a hipertensão arterial não controlada contribui para o declínio cognitivo e demência a longo prazo. Na meta análise “Antihypertensive classes, cognitive decline and incidence of dementia: a network meta-analysis”, que envolveu 12 estudos, concluiu-se que um melhor controlo da pressão arterial ao longo de quatro anos reduzia a progressão das lesões cerebrais e o declínio cognitivo.

HN – O comprometimento é precoce e progressivo?

APF – Quanto maior o tempo de exposição à hipertensão arterial não controlada, maior é o risco de lesão de órgão mediada pela hipertensão (LOMH) com compromisso micro e macrovascular.  As lesões induzidas pela hipertensão têm um início muito precoce, ainda numa fase inicial do adulto jovem.

Perante o diagnóstico de hipertensão arterial importa iniciar medicação, perceber mediante exames complementares de diagnóstico se já existe LOMH, de forma a estabelecer a melhor estratégia para evitar o agravamento ou promover a sua regressão. As últimas guidelines europeias de hipertensão (2018) recomendam, em hipertensos com sintomas neurológicos e /ou com declínio cognitivo, a realização de exames de imagem cerebral para detetar alterações específicas provocadas pela hipertensão arterial. A gravidade e progressão destas lesões cerebrais “silenciosas” pode ser abrandada com o controlo da hipertensão arterial.

HN – Como evolui o risco relativo de AVC quando existe uma redução da hipertensão? O que dizem os estudos?

APF – A hipertensão arterial aumenta o risco de acidente vascular cerebral (AVC) isquémico e hemorrágico, e constitui um fator de risco para AVC recorrente. A meta-análise de Mettehad, que incluiu 123 estudos, envolvendo um total de 613.815 participantes, demonstrou que cada decréscimo de 10 mmHg na pressão arterial sistólica se associou a uma redução de 27% no risco de AVC.

HN – Os doentes com a pressão arterial controlada têm menor comprometimento das placas ateroscleróticas e maior taxa de regressão dessas placas comparativamente aos doentes que não têm a HTA controlada?

APF – Um pequeno número de estudos relatou os efeitos de medicamentos anti-hipertensivos sobre a espessura íntima-média carotídea (EIM-C), que é um indicador sensível de saúde vascular. A redução da tensão arterial, ao diminuir o “stress” sobre a parede arterial, atrasa ou contribui para a regressão das placas ateroescleróticas. Contudo, é importante realçar que, nestes doentes, o controlo da hipertensão arterial deve ser complementado com alterações de estilo de vida, tratamento com estatinas e terapêutica antiplaquetária.

HN – Apesar de medicados, muitos doentes mantêm os valores acima do desejável. O que fazer, se até mesmo a tensão arterial “borderline” significa um risco para o tecido cerebral e a função neuronal?

APF – A hipertensão arterial de difícil controlo é definida como resistente ao tratamento quando doses otimizadas de uma estratégia terapêutica apropriada não consegue baixar os valores clínicos da PAS e da PAD para <140mmHg e/ou <90mmHg, respetivamente; o controlo inadequado da PA foi confirmado por MAPA (Monitorização Ambulatória da Pressão Arterial) ou AMPA (Automedição da Pressão Arterial no Domicílio); após exclusão de várias causas de hipertensão pseudo-resistente (especialmente baixa adesão à medicação) e hipertensão secundária.

O tratamento recomendado para a hipertensão resistente é o reforço de medidas de estilo de vida, especialmente a restrição do sódio, sendo obrigatório utilizar associações de vários fármacos e com recurso muito frequente aos diuréticos.

HN – O tratamento da hipertensão na fase aguda do AVC tem uma abordagem distinta da fase preventiva?

APF – O tratamento da hipertensão na fase aguda do evento isquémico e hemorrágico continua uma área de incerteza, embora tenha tido avanços inquestionáveis na última década. A pressão arterial é por vezes elevada no início do evento agudo, mas frequentemente desce espontaneamente. Na fase aguda, a abordagem da hipertensão tem uma perspetiva de prevenção ou limitação da lesão neurológica associada, em particular no doente com AVC hemorrágico. No doente com AVC isquémico agudo candidato a terapia aguda de reperfusão, há uma necessidade de manter valores de tensão arterial <185/110mmHg durante pelo menos as primeiras 24 horas de forma a reduzir o risco de transformação hemorrágica. No entanto, em termos de prevenção, seja primária ou secundária, a lógica é a de redução da pressão arterial para os valores que se associam à prevenção de LOMH (130-140/90-80 mmHg).

HN – O AVC continua a ser a principal causa de mortalidade e incapacidade permanente em Portugal, ocorrendo com a mesma prevalência e gravidade durante a pandemia de Covid-19. Quais são as recomendações da SPAVC dirigidas aos profissionais de saúde? E à população em geral?

APF – Aos profissionais de saúde, referir que temos todos de trabalhar em conjunto para fazer as melhorias necessárias em toda a cadeia de cuidados de AVC.

À população, salientar que o circuito da Via Verde do AVC continua a ser seguro, com os necessários procedimentos, equipamentos e recursos para contenção do contágio por Covid-19 e pode ser ativado na fase pré ou intra-hospitalar.

Independentemente de estarmos em contexto de pandemia de Covid-19, na presença da instalação dos seguintes sinais de alerta de AVC (3 F’s), devemos contactar de imediato o Número Europeu de Emergência 112: Fala, Face ou Força – dificuldade em falar, desvio da face, falta de força num membro.

HN – A pandemia está a ter impacto no funcionamento da Via Verde do AVC e no tempo que os doentes levam até pedirem ajuda perante uma suspeita de AVC, devido ao receio de contágio nos serviços de saúde?

APF – Verificou-se uma redução no número de admissões em Unidade de AVC e de doentes tratados com fibrinólise e trombectomia mecânica em relação ao período homólogo do ano anterior. O tempo entre o início dos sintomas e a entrada no hospital também sofreu agravamento. É possível que, por receio, as pessoas não procurem as unidades de saúde, algo que a SPAVC tem combatido.

HN -Tendo em conta que, como refere o Prof. Castro Lopes, presidente da SPAVC, “tempo é cérebro”, as consequência podem ser dramáticas, não só termos de mortalidade mas das hipótese de recuperação dos doentes?

APF – Quanto mais rápido uma pessoa receber tratamento, mais cérebro é poupado, seja com a restauração da irrigação do cérebro por via da trombólise e/ou da trombectomia, ou com o início precoce do tratamento de suporte no AVC hemorrágico. O tempo perdido determina incapacidade neurológica e redução das hipóteses de recuperação.

Adelaide Oliveira

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