Filipa Fixe: “Portugal tem a capacidade tecnológica de ser uma montra digital na saúde”

07/20/2021
Para Filipa Fixe, Executive Board Member da Glintt, a Inteligência Artificial veio revolucionar os cuidados de saúde, bem como saúde económica das unidades hospitalares. A especialista em tecnologia e gestão em saúde recusa a ideia de “médicos eletrónicos”, mas admite que a inteligência artificial pode evitar erros médicos. “Estes erros são indicados como a terceira causa de morte”, adverte.

HealthNews (HN)- Tem uma vasta experiência em tecnologia e gestão da saúde. Do seu ponto de vista quais os contributos da Inteligência Artificial na área da saúde?

Filipa Fixe (FF)- Temos de admitir que a IA está a modificar de forma substancial os cuidados de saúde. Nos últimos dois anos o investimento em IA, pelas organizações que estão no ecossistema alargado da Saúde, tem crescido de forma exponencial.

Uma das formas de realizar todo o potencial da tecnologia na área da saúde está relacionada com a utilização dos dados através da inteligência artificial (IA). A capacidade e o potencial que temos para transformar os dados de saúde em informação e conhecimento é enorme. Por exemplo, na utilização de algoritmos para avaliar imagens médicas, para antecipar diagnósticos e robôs cirúrgicos são áreas onde a inteligência artificial e o machine learning prometem revolucionar a gestão da saúde individual e nacional.

Acredito que a inteligência artificial e outras tecnologias emergentes nunca vão substituir os profissionais de saúde. Vamos ter cada vez mais tecnologia na área da saúde, mas temos de ter sempre a decisão humana que acompanha cada doente no seu percurso de vida. Ainda estamos muito longe daquilo que podemos chamar “médicos eletrónicos”, mas cada vez mais perto de perguntar ao nosso espelho “como está a minha saúde hoje?”.

HN- Mencionou algumas ferramentas baseadas em inteligência artificial, existindo ainda softwares que procuram doenças com base nos sintomas do paciente. A Inteligência Artificial evita erros médicos?

FF- Sim. Há tecnologias que estão a revolucionar a saúde, mas temos visto que, mesmo antes da pandemia, o investimento da inteligência artificial por parte das organizações de saúde cresceu de forma muito consistente. De acordo com um estudo da Delloite nos Estados Unidos revela que mais de 75% das grandes organizações de saúde investiram 50 milhões de dólares em IA no ano de 2019.

Como todas as tecnologias a inteligência artificial tem benefícios, riscos e gera alguns receios. Sobre os benefícios, um estudo do Hospital John Hopkins mostra que muitas milhares de mortes nos Estados Unidos são devidas a erros médicos. Estes erros são indicados como a terceira causa de morte. A IA pode ajudar a não cometer este tipo de erros e mortes desnecessárias. Um exemplo muito claro diz respeito à prescrição de medicamentos: se tivermos algoritmos de IA que reconhecem o perfil clínico do doente e um banco de dados sobre as interações medicamentosas, pode ser possível antecipar/evitar algum tipo de erro na prescrição.

A inteligência artificial reduz, ainda, ineficiências dentro das unidades hospitalares. Um dos maiores desafios dentro de uma unidade de saúde é a escala de alocação dos profissionais em função das suas necessidades clínicas. A IA pode ajudar nesta gestão, permitindo reduzir em cerca de 90% o tempo que é despendido e, com isso, permitir por exemplo, fazer mais cirurgias a tempo e horas.

HN- A IA permite diagnósticos mais rápidos?

FF- Melhora os diagnósticos e com mais precisão. Temos vindo a ouvir falar do papel da IA para a deteção precoce de determinadas doenças neurológicas ou oncológicas que muitas vezes a olho nu não são detetáveis. Estes algoritmos vão aprendendo e conseguem detetar sinais que permitem antecipar um diagnóstico de Parkinson, por exemplo.

HN- No final do ano passado participou numa conferência a propósito deste tema e referiu que a IA para além de ser útil para os hospitais também é quando estamos em casa. Consegue explicar melhor esta afirmação?

FF- Todos nós queremos estar saudáveis durante o maior tempo possível, mas quando entramos na fase da doença, a situação ideal será a de estar em casa e poder ser monitorizado à distância com a capacidade de estar ligado às unidades de saúde através de sistemas que permitam cuidados inteligentes e remotos.

Hoje em dia, em média, por casa temos 2,4 pessoas, mas o número de dispositivos que temos por habitação são 6,3. Isto significa que estamos altamente conectados e dependentes da tecnologia. No caso dos doentes crónicos, hoje em dia já temos dispositivos médicos que permitem monitorizar os parâmetros de cada doença, fazendo a recolha e enviando os dados para um centro único onde podem ser analisados de forma imediata e despoletar alertas para o doente e para os profissionais de saúde caso se justifique. Este é um exemplo claro onde combinando a Internet of Things (IoT) com a Inteligência Artificial poderíamos ter uma central de monitorização dos doentes crónicos a nível nacional e evitar episódios clínicos graves ou emergentes.

HN- Estas novas soluções têm impacto na redução dos custos dos serviços de saúde. É assim?

FF- Acima de tudo devemos centrar os nossos objetivos para atingir melhores resultados em saúde. No entanto, um dos temas que está em cima da mesa de todos os países é a sustentabilidade financeira dos serviços de saúde. A ideia é garantirmos a melhoria dos resultados, ao mesmo tempo que olhamos para a sustentabilidade financeira no ecossistema da saúde. Hoje em dia não podemos falar de saúde sem falar do digital. A sustentabilidade financeira só vai ser conseguida através da tecnologia. A IA, por exemplo, atua na prevenção e sabemos que, quando atuamos na prevenção, estamos a reduzir custos na fase de tratamento e a melhorar a qualidade de vida de cada pessoa, contribuindo para um país mais produtivo e mais saudável.

HN- Qual é o panorama português da saúde digital e da Inteligência Artificial?

FF- Mesmo antes da pandemia Portugal já tinha feito um grande investimento na área da saúde e do digital. Temos muito bons exemplos de aquilo que se fazia antes da chegada do vírus (falo da telemedicina, a linha do SNS24 e a prescrição eletrónica de medicamentos). A pandemia acelerou a adoção: o que tipicamente demoraria anos, aconteceu no espaço de tempo de semanas e/ou de meses.

Em Portugal, o que observámos foi uma adoção muito efetiva da telemedicina. Hoje em dia, tanto no SNS como no setor privado, conseguimos agendar uma consulta à distância de um ‘click’ e funciona. Na telemonitorização começámos também a dar passos efetivos para que seja consistente e para que cada doente tenha a opção de utilizar esta ferramenta para a gestão da sua doença crónica.

A IA começa também a ser utilizada nas entidades de saúde. Temos um projeto de machine learning no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, o KnowLogis, que visa facilitar a tomada de decisão na logística hospitalar através de um dashboard inteligente, que auxilia na gestão, previsão de necessidades, monitorização e coordenação dos encargos com medicamentos, dispositivos médicos e materiais.

HN- A pandemia teve efeitos positivos ou negativos nesta área?

Em 2019, a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares e a Glintt realizaram em conjunto um estudo sobre a adoção da telesaúde e da inteligência artificial nas unidades de saúde. Concluiu-se que 47% das instituições afirmou ter pelo menos um projeto em fase piloto ou implementado.

Acredito que a pandemia acelerou a utilização efetiva das TICs, derrubando algumas das barreiras que pudessem existir dentro das instituições. Acredito que Portugal tem a capacidade tecnológica para executar e ser uma montra digital no que diz respeito à saúde. Precisamos de capacitar as lideranças a fazer a correta gestão da mudança: não é uma mudança tecnológica, mas sim uma mudança cultural, em que o mais importante é que todos os envolvidos percebam o objetivo final para funcionarem como uma orquestra.

FF- Gostaria de deixar alguma nota final?

Um dos desafios da IA é a confiança. É um ativo crítico que tem de existir a nível pessoal, institucional e governamental para que se atinjam ganhos materiais da utilização da tecnologia no contexto da saúde. É preciso que haja confiança e um esforço conjunto para que, quer os profissionais de saúde quer o cidadão ou os pagadores, realizem o potencial da inteligência artificial nas diferentes tipologias de unidades de saúde.

Entrevista de Vaishaly Camões

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