Cerca de metade dos doentes em cuidados intensivos em África morre

21 de Maio 2021

Quase metade dos doentes com covid-19 admitidos em unidades de cuidados intensivos em África acaba por morrer, segundo dados de um estudo com mais de 3 mil pacientes de 64 hospitais em 10 países africanos.

Os dados do estudo, publicado pela revista científica The Lancet, revelam que as taxas de mortalidade entre adultos 30 dias após serem admitidos nos cuidados intensivos com suspeitas ou diagnóstico de covid-19 são “consideravelmente mais altas” em África (48,2%), do que a média mundial (31,5%).

Ou seja, em 3.077 pacientes admitidos, 1.483 acabaram por morrer, conclui o estudo que envolveu 3.140 adultos admitidos em 64 hospitais de 10 países africanos, incluindo Moçambique, entre maio e dezembro de 2020.

Egito (10 hospitais), Etiópia (7), Gana (2), Quénia (3), Líbia (14), Maláui (3), Moçambique (2), Níger (2), Nigéria (8) e África do Sul (13) foram os países participantes.

A análise estima que as taxas de mortalidade nestes pacientes foram 11% (na melhor das hipóteses) a 23% (na pior das hipóteses) superiores à média global.

A maioria dos pacientes que integraram o estudo eram homens (61% e com idade média de 56 anos) com poucas condições crónicas, sendo as mais comuns tensão arterial elevada, diabetes, VIH/Sida, doença renal crónica e doença arterial coronária.

Ter doença renal crónica ou VIH/Sida quase duplicou o risco de morte, enquanto a doença hepática crónica mais do que triplicou as probabilidades de um doente morrer.

A diabetes surgiu também associada a uma fraca sobrevivência, com 75% de aumento do risco de morte.

Os investigadores, todos baseados em África, apontam como “fator crítico” para as mortes em excesso a falta de recursos de cuidados intensivos, mas também a subutilização dos recursos disponíveis.

Por exemplo, indicam que metade dos doentes morreu sem receber oxigénio, e mesmo se 68% dos hospitais têm acesso a equipamentos de diálise, apenas 10% dos doentes críticos receberam esses cuidados.

As estimativas sugerem que o fornecimento de serviços de diálise é sete vezes menor, e o fornecimento de ECMO (para oxigenar o sangue) é 14 vezes menor do que o necessário para tratar adequadamente os doentes com covid-19.

“O nosso estudo é o primeiro a dar uma imagem detalhada e abrangente do que está a acontecer às pessoas que estão gravemente doentes com covid-19 em África”, disse o professor Bruce Biccard, do Hospital Groote Schuur e da universidade da Cidade do Cabo, África do Sul, que coliderou a investigação.

“Infelizmente, indica que a nossa capacidade de prestar cuidados está comprometida por uma escassez de camas e recursos limitados dentro das unidades de cuidados intensivos”, acrescentou.

Segundo explicou, “o fraco acesso” a intervenções “que salvam vidas”, como diálise, pronação (virar os pacientes de barriga para baixo para melhorar a respiração), e monitorização do oxigénio sanguíneo “podem ser fatores na morte destes doentes e explicar, em parte, porque é que um em cada oito teve a terapia retirada ou limitada”.

“Esperamos que estes resultados possam ajudar a dar prioridade aos recursos e a orientar a gestão de pacientes gravemente doentes em contextos de recursos limitados em todo o mundo”, sublinhou.

Embora as unidades de cuidados intensivos tenham relatado taxas relativamente elevadas de pessoal, com cobertura médica 24 horas por dia, sete dias por semana, e uma relação enfermeiro/paciente de 1 para 2, a mortalidade foi elevada, possivelmente devido à falta de pessoal especializado, dizem os investigadores.

“Apesar de a nossa demografia mais jovem significar que a maioria dos países em África evitaram a mortalidade em larga escala observada em muitas partes do mundo, a mortalidade intra-hospitalar sofre de falta de recursos, com apenas metade dos encaminhamentos admitidos para cuidados intensivos devido à escassez de camas”, disse, por seu lado, Vanessa Msosa, do Hospital Central de Kamuzu, no Maláui.

Os autores reconhecem algumas limitações do estudo, nomeadamente por ter sido realizado principalmente em hospitais universitários, financiados pelos governos, considerando “provável” que os resultados possam ser piores em hospitais de nível inferior e com menos recursos.

Acrescentam que, embora este seja o maior conjunto de dados sobre doentes críticos de unidades de cuidados intensivos, representa apenas 10 países africanos, e a maioria dos hospitais encontra-se em países “relativamente bem equipados” como a África do Sul e o Egito, o que poderá afetar os resultados globais.

Num comentário à investigação, Bruce Kirenga e Pauline Byakika-Kibwika da universidade de Makerere, Uganda – que não participaram no estudo – consideraram que a subutilização dos recursos “é uma descoberta intrigante e contrária à crença generalizada de que os recursos são escassos” no continente.

“É importante pensar para além da disponibilidade de recursos e considerar questões de funcionalidade. É comum em África haver equipamento caro que não funciona devido a manutenção deficiente ou à falta de recursos humanos qualificados”, acrescentaram.

Em 2017, a organização Tropical Health and Education Trust relatou que 40% do equipamento médico em África estava fora de serviço, 80% do equipamento médico tinha sido doado, 70% a 90% do equipamento doado nunca foi operacionalizado, e apenas dois países africanos tinham engenheiros biomédicos profissionais.

LUSA/HN

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

APEF e Ordem dos Farmacêuticos apresentam Livro Branco da formação

A Associação Portuguesa de Estudantes de Farmácia (APEF) promove a 22 de novembro, em Lisboa, o Fórum do Ensino Farmacêutico. O ponto alto do evento será o lançamento oficial do Livro Branco do Ensino Farmacêutico, um documento estratégico que resulta de um amplo trabalho colaborativo e que traça um novo rumo para a formação na área. O debate reunirá figuras de topo do setor.

Convenções de Medicina Geral e Familiar: APMF prevê fracasso à imagem das USF Tipo C

A Associação Portuguesa de Médicos de Família Independentes considera que as convenções para Medicina Geral e Familiar, cujas condições foram divulgadas pela ACSS, estão condenadas ao insucesso. Num comunicado, a APMF aponta remunerações insuficientes, obrigações excessivas e a replicação do mesmo modelo financeiro que levou ao falhanço das USF Tipo C. A associação alerta que a medida, parte da promessa eleitoral de garantir médico de família a todos os cidadãos até final de 2025, se revelará irrealizável, deixando um milhão e meio de utentes sem a resposta necessária.

II Conferência RALS: Inês Morais Vilaça defende que “os projetos não são nossos” e apela a esforços conjuntos

No segundo dia da II Conferência de Literacia em Saúde, organizada pela Rede Académica de Literacia em Saúde (RALS) em Viana do Castelo, Inês Morais Vilaça, da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, sublinhou a necessidade de unir sinergias e evitar repetições, defendendo que a sustentabilidade dos projetos passa pela sua capacidade de replicação.

Bragança acolhe fórum regional dos Estados Gerais da Bioética organizado pela Ordem dos Farmacêuticos

A Ordem dos Farmacêuticos organiza esta terça-feira, 11 de novembro, em Bragança, um fórum regional no âmbito dos Estados Gerais da Bioética. A sessão, que decorrerá na ESTIG, contará com a presença do Bastonário Helder Mota Filipe e integra um esforço nacional do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida para reforçar o diálogo com a sociedade e os profissionais, recolhendo contributos para uma eventual revisão do seu regime jurídico e refletindo sobre o seu papel no contexto tecnológico e social contemporâneo.

Lucília Nunes na II Conferência da RALS: “A linguagem técnica é uma conspiração contra os leigos”

No II Encontro da Rede Académica de Literacia em Saúde, em Viana do Castelo, Lucília Nunes, do Instituto Politécnico de Setúbal ,questionou as certezas sobre autonomia do doente. “Quem é que disse que as pessoas precisavam de ser mais autónomas?”, provocou, ligando a literacia a uma questão de dignidade humana que ultrapassa a mera adesão a tratamentos

II Conferência RALS: Daniel Gonçalves defende que “o palco pode ser um bom ponto de partida” para a saúde psicológica

No âmbito do II Encontro da Rede Académica de Literacia em Saúde, realizado em Viana do Castelo, foi apresentado o projeto “Dramaticamente: Saúde Psicológica em Cena”. Desenvolvido com uma turma do 6.º ano num território socialmente vulnerável, a iniciativa recorreu ao teatro para promover competências emocionais e de comunicação. Daniel Gonçalves, responsável pela intervenção, partilhou os contornos de um trabalho que, apesar da sua curta duração, revelou potencial para criar espaços seguros de expressão entre os alunos.

RALS 2025: Rita Rodrigues, “Literacia em saúde não se limita a transmitir informação”

Na II Conferência da Rede Académica de Literacia em Saúde (RALS), em Viana do Castelo, Rita Rodrigues partilhou como o projeto IMPEC+ está a transformar espaços académicos. “A literacia em saúde não se limita a transmitir informação”, afirmou a coordenadora do projeto, defendendo uma abordagem que parte das reais necessidades dos estudantes. Da humanização de corredores à criação de casas de banho sem género, o trabalho apresentado no painel “Ambientes Promotores de Literacia em Saúde” mostrou como pequenas mudanças criam ambientes mais inclusivos e capacitantes.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights