Luís Celestino da Rocha

Medição do valor do medicamento: uma perspetiva da indústria farmacêutica

06/02/2021

Não nos restam dúvidas sobre o papel preponderante que o medicamento, entre as tecnologias de saúde, tem trazido para a saúde; na fortíssima redução da mortalidade ocorrida nas últimas décadas e na melhoria da qualidade de vida dos cidadãos.

Desde há muito que a investigação biomédica nos tem oferecido uma profusão de informação sobre os sistemas biológicos, a doença e o doente. Isto acontece quando acerta, abrindo o caminho a novas avenidas de conhecimento e mesmo quando erra (ao excluir hipóteses antes consideradas viáveis).

O medicamento é hoje a mais bem estudada das tecnologias e intervenções em saúde; porventura a área onde é possível maior rigor na estimativa do seu impacto individual e societal.

Mas se assim é, porque é que o medicamento continua a ser objeto da mais intensa avaliação, por oposição a outras áreas de investimento público)?

Dirão os críticos que somos prisioneiros no nosso próprio método, do nosso discurso, da abundância dos nossos dados …

Mas considerando o extraordinário contributo do medicamento, a perspetiva de maximização do seu benefício convoca-nos a estimular uma intensa investigação académica na avaliação das intervenções médicas e dos seus resultados.

Seja a decisão da utilização de um dado medicamento num contexto clínico específico, seja uma decisão de integrar esse medicamento num algoritmo terapêutico ou formulário ou uma decisão de financiamento nacional num dado contexto… a cada vez nos provoca a uma simples consideração:

Will it do what it says in the tin ?

Se hoje já não contestamos a utilidade dos ensaios clínicos, como “gold standard” de investigação e pilar na demonstração do valor de um medicamento, também sabemos que o resultado da sua utilização em contexto real é frequentes vezes diversa da obtida nas condições “puras” de um ensaio.

Alguns destes vieses foram há muito identificados e a tentativa da sua correção informa o desenho dos ensaios modernos, que procuram aproximar-se da clinica real e capturar escolhas e preferências dos doentes. Ainda, a valoração da evidência e transponibilidade dos resultados dos ensaios clínicos pode ser melhorada por recurso à análise conjunta de vários ensaios.

Mas é o desenvolvimento das TI na saúde e a disponibilização de fontes de dados estruturadas, que nos vêm trazer uma visão mais integrada sobre a validade externa dos ensaios clínicos. Se hoje medimos outcomes reais … é porque as tecnologias de recolha, armazenamento, comunicação e processamento de dados o vêm permitir a uma escala sem precedentes.

Sabemos agora que a validade externa dos ensaios clínicos é condicionada por diversos fatores inerentes ao próprio estudo; a seleção dos locais, dos doentes, critérios de inclusão/ exclusão, condições de prestação de cuidados vs. as da população real, tipo e relevância dos endpoints..

Mas essa validade é também condicionada pelas condições reais de utilização do medicamento, onde pontua a heterogeneidade da vida real; co-morbilidades dos doentes, adesão terapêutica, as variações da própria pratica médica, etc..

A diferença entre o observado e o real é muito relevante num contexto de avaliação do retorno que obtemos de uma tecnologia, tendo permitido a introdução de novos conceitos no domínio da avaliação económica do medicamento, e também na avaliação ex-post do impacto dessa tecnologia.

Se, no momento da avaliação para comparticipação se tomam como base os resultados dos estudos clínicos, raramente se incluem dados de vida real, por inexistentes à data da submissão. Embora testando a robustez da decisão, por via a analise de sensibilidade dos modelos, o certo é que haverá um tempo adequado para proceder à sua reanálise.

Foi certamente este o espírito presente à construção do sistema de avaliação (e reavaliação) do medicamento em Portugal. Provavelmente inspirado nos modelos de introdução mais precoce e produção de evidencia ex-post (modelos adaptativos), o modelo Português prevê a reavaliação com base em evidencia gerada após um determinado período.

Já nos tempos mais recentes, a própria industria farmacêutica procurou, apresentar modelos de pagamento por desempenho, associados à performance efetiva dos seus medicamentos. Modelos que são aplicáveis ao nível da instituição (Hospital, primary care setting, …), em contexto regional ou nacional.

Estamos no início deste ciclo, a trilhar esse caminho; criando modelos de partilha de risco/benefício associados prémios ou penalizações (bónus/malus).

É o caso da contratualização da redução da taxa de surtos em doentes com esclerose múltipla em curso nos EUA. É o caso do modelo de não progressão de leucemia mieloide crónica. São ainda os casos de pilotos na Alemanha, EUA e país de Gales onde se contratualizou uma redução do risco de hospitalizações em doentes com insuficiência cardíaca.

BUT Are we ready to take the dive?

A curva de experiencia que vamos tendo é a de que os métodos, as pessoas e os sistemas não estão ainda preparados para o desenvolvimento de modelos adaptativos e de risk/reward.

Mas como “rule of thumb”, os sistemas / experiencias que mais progrediram incluíram como fatores chave:

· Uma definição bem estabelecida sobre outcomes desejaveis

·Um sistema de dados estruturado, bem estabelecido, regularmente atualizado, amplamente usado pelos profissionais e de fácil acesso aos stakeholders (acesso protocolado e que privilegie a confidencialidade)

·Uma relação construtiva entre os parceiros na contratualização

Sendo certo que o caminho se faz caminhando, estes modelos e o próprio SINATS trazem consigo uma obrigação para todos na capacitação e desenvolvimento de competências (bioestatística, IT, programação, systems design), na afetação de recursos, na flexibilidade na contratualização, na flexibilidade organizativa.

Por onde começar em Portugal?

Dados os limitados recursos financeiros e capacidade instalada, sugere-se como primeiros candidatos os medicamentos:

· onde exista incerteza na decisão (maior variabilidade na analise de sensibilidade, duvidas na validade externa clínica)

• onde ocorram maiores encargos orçamentais

• onde haja um custo unitário mais elevado

• onde existam registos clínicos bem estabelecidos nos médicos

• onde seja acordado o desenvolvimento de evidencia ex-post

• onde seja necessário documentar valor terapêutico/economico em subpopulações ou settings

· em áreas onde o Estado pretenda a incentivar investigação ou pretenda desenvolver competencias à escala international

O papel das iniciativas de Value Based Healthcare (VBHC)

Iniciativas VBHC trazem consigo uma promessa ambiciosa; uma dramática aceleração da melhoria da produtividade na saúde, como resposta as ansiedades de mais e melhores cuidados, para uma população em acelerado crescimento e envelhecimento.

E procuram materializa-la, através do mais bem conhecido “motor” do desenvolvimento; a melhoria contínua potenciada pela competição por um resultado mutuamente reconhecido e o alinhamento dos seus incentivos.

Ao definir “disease specific standards” aceites por instituições e clínicos de referência, calibrados pela perspetiva do destinatário (o doente), introduz o elemento fundamental: a consensualização do VALOR a medir como resultado da INTERVENÇÂO.

Ao procurar fazê-lo, fazem porventura muito mais; recentram profissionais, instituições e a cadeia de valor das tecnologias no fundamental e na raison d’être dos cuidados de saúde: a melhoria objetiva da condição e experiencia do doente.

A prazo, contribuirá para um maior consenso em torno do valor do medicamento e das tecnologias de saúde, criando os incentivos à investigação científica e clinica orientada para resultados. Seguramente moldará o modelo das relações futuras entre ciência, industria, a clinica, o doente e o contribuinte.

Luis Rocha

1 Comment

  1. jose ribeiro

    Excelente artigo que demonstra bem o papel da IF no mundo e em Portugal. Mas, há sempre um mas; Portugal e o SNS ainda não estão preparados, pelo atraso claro na transição digital na saúde bem patente no PRR entregue em Bruxelas, nos registos, na interoperabilidade e sobretudo na analítica. Pode haver falta de hardware, de software mas é sobretudo o mindware do SNS que falta para podermos ter Value Based Healthcare. Esperemos que o PRR e a Transição Digital possa ajudar a diminuir o caminho.

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