Olga Azevedo: “O diagnóstico precoce assume agora particular relevância desde que temos à nossa disposição terapia específica para esta doença”

9 de Setembro 2021

“O diagnóstico precoce assume agora particular relevância desde que temos à nossa disposição terapia específica para esta doença, que pode travar a deposição das fibrilas amilóides de transtirretina”, refere a cardiologista Olga Azevedo, do Hospital Senhora da Oliveira - Guimarães.

HealthNews – O que é exatamente a Miocardiopatia Amiloide Associada a Transtirretina (ATTR-CM)?

Olga Azevedo (OA) – A Miocardiopatia Amiloide Associada a Transtirretina (ATTR-CM) é uma doença que resulta da deposição de fibrilas amilóides de transtirretina no miocárdio.

A transtirretina é uma proteína codificada pelo gene TTR, no cromossoma 18, que é produzida no fígado e no plexo coroideu e que serve de transportador da tiroxina e da proteína de ligação ao retinol. Quando a proteína transtirretina não assume uma conformação normal, pode depositar-se a nível intercelular no miocárdio sob a forma de fibrilas amiloides, originando amiloidose cardíaca.

A ATTR-CM pode ser hereditária ou wild-type.

A ATTR-CM hereditária resulta de uma mutação patogénica do gene TTR e consequente acumulação no miocárdio de transtirretina mutada. A ATTR-CM wild-type resulta da deposição no miocárdio de transtirretina wild-type (não mutada) e afeta indivíduos mais velhos, tendo também por isso no passado sido designada de amiloidose senil.

HN – E qual é a relação que existe entre a ATTR-CM e outra doença que os portugueses poderão conhecer melhor, também relacionada com transtirretina, a doença dos pezinhos ou paramiloidose?

OA – A polineuropatia amiloidótica familiar, também conhecida por PAF, paramiloidose ou doença dos pezinhos, é também uma forma de amiloidose resultante da deposição de transtirretina.

Esta é uma forma hereditária resultante de uma mutação patogénica do gene TTR, a mutação p.V30M (ou p.V50M na nomenclatura atual).

Esta doença é endémica em Portugal, devido a um efeito fundador da doença na região de Vila do Conde e Póvoa de Varzim, o que torna esta doença rara bastante prevalente e conhecida em Portugal. Foi descrita por um neurologista português, sendo por isso também conhecida pelo seu nome, doença de Corino de Andrade.

Esta mutação resulta num fenótipo predominantemente neuropático, daí a designação de Polineuropatia Amiloidótica. Isto significa que as manifestações mais precoces e predominantes da doença são neurológicas. Ao nível do sistema nervoso periférico, a doença causa uma polineuropatia sensitivomotora que atinge as extremidades dos membros superiores e inferiores e progride de forma ascendente. O atingimento do sistema nervoso autónomo condiciona sintomas autonómicos, como hipotensão ortostática e perturbações gastrointestinais. Contudo, em idade mais tardia, estes doentes podem desenvolver também manifestações cardíacas, tais como bloqueios cardíacos, hipertrofia ventricular e insuficiência cardíaca (ATTR-CM).

HN – Qual a maior diferença que destaca entre a versão hereditária e wild type da ATTR-CM?

OA – A ATTR-CM wild-type é uma forma de amiloidose essencialmente e quase exclusivamente cardíaca, que afeta indivíduos mais velhos, predominantemente homens, e que não é hereditária, resultando, portanto, da deposição da versão wild-type da transtirretina a nível cardíaco.

A ATTR-CM hereditária é uma doença familiar, com padrão de hereditariedade autossómico dominante, que resulta de uma mutação patogénica do gene TTR e, consequentemente, da deposição de uma versão mutada da transtirretina a nível cardíaco. Dependendo da mutação em causa, os fenótipos podem ser predominantemente cardíacos, predominantemente neurológicos (como na paramiloidose) ou mistos, mas as manifestações clínicas na versão hereditária são mais precoces que na ATTR-CM wild-type.

HN – Qual é a relação entre Insuficiência Cardíaca e ATTR-CM?

OA – A ATTR-CM causa hipertrofia ventricular, disfunção ventricular diastólica e sistólica, derrame pericárdico, arritmias, tais como a fibrilhação auricular, e bloqueios cardíacos, fatores estes que contribuem para o desenvolvimento de insuficiência cardíaca nestes doentes.

Assim, a ATTR-CM é uma causa de insuficiência cardíaca que deve ser despistada em doentes que apresentem determinadas red-flags que levantam a suspeita do seu diagnóstico.

De facto, estudos recentes apontam para que a ATTR-CM seja a causa de cerca de 13 a 19% dos casos de insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada e de até 5% dos casos de insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada e ainda sem hipertrofia ventricular.

HN – Na sua opinião, quando falamos da ATTR-CM estamos perante um iceberg, em que apenas vemos uma pequena parte da sua real dimensão?

A ATTR-CM é uma doença claramente subdiagnosticada.

O facto de até recentemente não existir uma terapêutica específica para estes doentes contribuiu para uma menor awareness e uma menor taxa de diagnóstico desta doença.

Mas o subdiagnóstico é mais acentuado na sua forma wild-type, pois afeta indivíduos mais velhos, nos quais tradicionalmente há um menor investimento no estudo diagnóstico e tratamento. Além disso, nesta forma da doença, as manifestações são quase exclusivamente cardíacas e os sinais extracardíacos, como síndrome do túnel cárpico, precedem em anos a amiloidose cardíaca, não sendo frequentemente reconhecida a sua relação com as manifestações cardíacas. Por fim, outras comorbilidades como a estenose aórtica severa, relativamente comum nos idosos, pode esconder o diagnóstico de amiloidose cardíaca, levando os clínicos a atribuir a causa da hipertrofia ventricular nestes doentes apenas à doença valvular. No entanto, sabe-se agora que a ATTR-CM existe em até 16% dos doentes com estenose aórtica severa.

Como referi, há ainda estudos que apontam a ATTR-CM como a causa de até cerca de 20% dos casos de insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada.

Outros estudos referem ainda que cerca de 0.4% dos indivíduos com mais de 70 anos submetidos a cintigrafia com Tc99m-DPD por motivo não cardíaco apresentam cintigrafia positiva para deposição de transtirretina.

Tendo em conta todos estes argumentos, é razoável pensar que a ATTR-CM não é uma doença assim tão rara e que há muitos casos subdiagnosticados.

HN – Existem dados para a população portuguesa?

OA – A nível internacional, temos um registo de amiloidose por transtirretina, o registo THAOS, que inclui 66 centros em 21 países e totaliza já cerca de 6044 doentes.

Neste registo, Portugal está no top 5 dos países com mais doentes incluídos, estando incluídos mais de 1600 doentes portugueses, predominantemente doentes com PAF, devido à forma endémica da doença que existe no nosso país.

Em relação ao número de doentes portugueses com ATTR-CM wild-type, não existem dados fidedignos na população portuguesa, devido ao seu significativo subdiagnóstico.

HN – Qual é a importância de um diagnóstico atempado destes doentes?

A ATTR-CM é uma doença crónica progressiva. Sem tratamento, a doença evolui com o desenvolvimento de hipertrofia ventricular cada vez mais grave, disfunção ventricular diastólica com restrição ao enchimento ventricular, disfunção sistólica com redução progressiva da fração de ejeção, arritmias e bloqueios cardíacos, eventual necessidade de pacemaker, insuficiência cardíaca com dependência de doses sucessivamente crescentes de diuréticos e diuréticos intravenosos, múltiplos internamentos por descompensação de insuficiência cardíaca e morte geralmente 3 a 5 anos após o diagnóstico da doença.

O diagnóstico precoce assume agora particular relevância desde que temos à nossa disposição terapia específica para esta doença, que pode travar a deposição das fibrilas amiloides de transtirretina.

HN – Qual o perfil típico dos doentes com ATTR-CM?

OA – Estes doentes apresentam-se clinicamente com insuficiência cardíaca, inicialmente com fração de ejeção preservada e posteriormente com fração de ejeção reduzida, arritmias e/ou bloqueios cardíacos.

Do ponto de vista ecocardiográfico, os doentes apresentam hipertrofia ventricular esquerda, que é caracteristicamente concêntrica e simétrica, mas que também pode assumir outros padrões, e que apresenta um aspeto de miocárdio pontilhado brilhante. A disfunção diastólica é importante, podendo assumir um padrão restritivo e com redução marcada das velocidades de Doppler tecidular (E’). Há ainda disfunção ventricular sistólica com redução marcada do strain longitudinal global que assume um padrão típico de apical sparing e numa fase mais avançada redução da fração de ejeção. A infiltração amiloide afeta todo o coração, gerando ainda hipertrofia do ventrículo direito, espessamento do septo interauricular (não poupando a fossa ovalis) e espessamento valvular. É também comum o derrame pericárdico e pleural.

Uma mensagem importante é que se uma imagem deste género surgir num idoso com estenose aórtica severa, devemos pesquisar ATTR-CM wild type e não atribuir necessariamente a hipertrofia ventricular esquerda à estenose aórtica.

Do ponto de vista do ECG, e apesar da hipertrofia existente, não são observados critérios de voltagem de hipertrofia ventricular esquerda, podendo a voltagem ser normal ou baixa. Existem frequentemente bloqueios de condução cardíaca, fibrilhação auricular e padrões de pseudoenfarte.

Do ponto de vista da RM cardíaca, os doentes apresentam aumento dos valores de T1 e realce tardio subendocárdico difuso, embora possam existir outros padrões de realce.

Do ponto de vista analítico, há uma elevação desproporcional dos valores de BNP ou NT-proBNP.

Do ponto de vista extracardíaco, os doentes podem apresentar síndrome do túnel cárpico, que pode ser aliás a única manifestação extracardíaca da ATTR-CM wild-type e que pode preceder em anos a amiloidose cardíaca. A rotura do tendão distal do bícepe braquial (sinal de Popeye) e a estenose do canal vertebral lombar também são manifestações características. No caso das formas hereditárias, pode coexistir neuropatia periférica sensitivomotora com perda da sensibilidade e depois da força muscular das extremidades, que progride proximalmente; neuropatia autonómica com hipotensão ortostática e perturbações gastrointestinais; opacidades do vitreo; e claro, a história familiar da doença.

HN – Há alguma margem para ter esperança nesta doença?

OA -Felizmente este tem sido um campo de investigação muito ativa e com bons resultados na área terapêutica. Dispomos agora de uma nova terapêutica farmacológica aprovada para a ATTR-CM, o que demonstrou reduzir mortalidade total e hospitalizações cardiovasculares nestes doentes. Temos ainda outras terapêuticas, tais como os silenciadores do gene TTR, que se encontram a ser testados em ensaios clínicos de fase 3 para a ATTR-CM.

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