Daniel Blaufuks olha para o rasto de uma cidade desaparecida em “Lisboa Cliché”

31 de Outubro 2021

O artista visual Daniel Blaufuks foi à procura do rasto de uma Lisboa desaparecida nas imagens captadas no final dos anos 1980, para criar um livro que é um "registo auto-fotobiográfico" intimista, repleto de referências a pessoas e lugares.

Com o título “Lisboa Cliché”, o livro, chancelado pela Tinta-da-China, percorre “uma época que passou, como todas passam, mas deixou algum rasto e algum lastro”, comentou o artista em declarações à agência Lusa sobre o livro cuja capa é ilustrada por uma foto a cores, e, no interior, domina a imagem a preto e branco.

“O livro funciona como um documento de uma época que passou. A própria cidade mudou muito, alterou-se vertiginosamente, em termos de espaços vividos e também de vivência. As pessoas que aqui vivem hoje são muito diferentes das que a habitavam há trinta ou 40 anos, em classes sociais, e até nacionalidades”, compara o artista, nascido em Lisboa, em 1963.

Como documento, “Lisboa Cliché” vai buscar ao final dos anos 1980 e primeiros anos da década de 1990, rostos e espaços vividos por Blaufuks, trazidos para o presente em fotografias que dão o tom nostálgico daquilo que desapareceu: a juventude dos protagonistas e de espaços que foram lugares de convívio e de consumo cultural, sobretudo à noite.

Restaurantes, bares e tabernas do Bairro Alto, tascas, estações de comboio, tabacarias, cabines telefónicas – nos dias de hoje solitárias – o Cinema Condes, e figuras conhecidas da cultura, músicos, artistas, atores e escritores, como Sérgio Godinho, Catarina Mourão, Fernando Assis Pacheco, Alice Geirinhas, Fernando Relvas, João Peste, Al Berto, Paula Moura Pinheiro, João Fonte Santa.

Também anónimos como o menino que engraxava sapatos em frente ao café Nicola, os varredores das ruas ou as senhoras que trabalhavam nas caixas de venda de bilhetes nos cinemas.

“O porquê do livro é deixar um registo de uma época que eu vivi intensamente”, comentou o artista, descendente de uma família de refugiados judeus alemães, chamando-lhe “por piada, mas não tanto assim”, uma auto-fotobiografia, porque tem dois personagens: “um sou eu, e o outro é Lisboa, e tudo o que se me atravessou pelo caminho”, diz, ressalvando depois que “não é tudo, mas uma seleção, obviamente”.

O seu primeiro documentário, “Sob Céus Estranhos” (2002), é uma crónica da passagem dos refugiados judeus por Lisboa, durante a II Guerra Mundial, entre os quais se incluía a sua família.

Ao longo das muitas páginas não numeradas do livro, desvendam-se os encontros com os amigos, e alguns desencontros, como aquele que relata do poeta Mário Cesariny se ter recusado a ser fotografado.

“Antes dos mais modernos ‘snackbars’, existiam espalhadas por Lisboa as casas de pasto e as ainda mais modestas tascas de comes e bebes, onde, por poucos escudos, uma pessoa podia aviar-se rapidamente ao balcão com uma ‘sandocha’ de ovo ou de chouriço, acompanhada por um rissol de camarão ou um croquete de carne e ainda um ‘pénalti’, um copo de três ou um galão com um caracol”, recorda.

Blaufuks está também presente em várias fotografias, numa delas, com o seu reflexo numa das montras: “(…) um eu anterior ao que sou hoje. A máquina era uma Nikon FE”.

Além dos seus textos pessoais, a descrever imagens, a recordar pessoas, episódios da noite, convívio com amigos num território que “era mais uma aldeia do que cidade, mais calma”, por ser muito menos habitada, nessa época.

Daniel Blaufuks diz não ter saudades desses tempos porque “não vale a pena ficar pendurado no passado, ou ter saudades de uma coisa que não volta, de contrário não se viveria nem o presente nem o futuro”.

“Não tenho nem saudades nem nostalgia, mas talvez sinta a pena de ter envelhecido mais rapidamente do que devia”, prossegue, sobre a vida na Lisboa desaparecida: “Independentemente da cidade ter mudado, eu também mudei”, remata o artista, que, em Lisboa, fez estudos na Ar.Co – Centro de Arte e Comunicação Visual, e também no Colégio Real de Arte, em Londres, e na Fundação Watermill, em Nova Iorque.

Diz ainda que, agora, depois da pandemia, a cidade voltou a mudar, em aspetos positivos e negativos, como “voltar a ouvir as buzinas por todo o lado, e o trânsito intenso, mas isso faz parte da vida urbana”.

“O que eu tenho pena é de alguns sítios que desaparecem numa voragem comercial, capitalista, neoliberal dos tempos. Lojas que tinham interiores bonitos, cafés muito agradáveis, que desapareceram, mas tal como outros antes de mim também desapareceram. As cidades estão sempre em transformação, tal como as pessoas”, conclui, sobre um processo imparável.

Quanto ao texto, o artista considera que ajuda a criar um “lado autobiográfico”: “A maior parte são textos meus e outros são sobre a cidade. Inseri-os para criar espaços de paragem importantes entre as fotografias, e criar um movimento quase cinematográfico”.

Entre as imagens, também se encontram poesias de autores como Sofia de Mello Breyner Andresen, Alexandre O’Neill, Al Berto, Eugénio de Andrade, Ruy Belo, Fernando Assis Pacheco e Agostinho da Silva.

“Mais do que um livro sobre a cidade é um passeio sobre a cidade, e esse movimento é dado pelo texto”, aponta, acrescentando: “É sobre a minha Lisboa, um olhar à distância”, vertido numa obra cujo título contém a palavra que se usava na fotografia, antes vinda da tipografia, relativa à matriz gravada em placa metálica e destinada à impressão de imagens e textos.

Em 2006, Daniel Blaufuks venceu o Premio BES Photo com uma obra que envolve um vídeo de 90 minutos, intitulado “Theresianstadt”.

Recebeu o Prémio Artes Plásticas da Associação Internacional de Críticos de Arte 2016 pelas exposições “Léxico”, realizada na Bienal de Vila Franca de Xira, e “Tentativa de Esgotamento”, na Galeria Vera Cortês, em Lisboa.

LUSA/HN

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