“Esta exposição é sobre pessoas” – Sobrinho Simões

10 de Novembro 2021

A arte e a ciência, formas máximas da intervenção humana, são o mote da reflexão do e investigador Sobrinho Simões sobre o “Ciclo da Vida”, exposição do Museu Nacional Soares dos Reis no ICBAS, patente até 07 de janeiro, no Porto.

É com a exposição “Ciclo da Vida” que o Museu Nacional Soares dos Reis (MNSR) inaugura o projeto de itinerância Outros Lugares, levando a mostra até ao Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), onde está patente desde 28 de outubro.

Inclui obras alusivas às quatro estações, que não estão assinadas nem datadas, mas que serão da segunda metade do século XVII.

Esses quadros são confrontados com oito retratos do acervo do MNSR, de Marques de Oliveira, dos irmãos Carlos Alberto e José Júlio de Sousa Pinto, de João Augusto Ribeiro e de José Alberto Nunes, em que o ser humano surge em diferentes fases da vida.

O texto de abertura é assinado pelo reconhecido médico e investigador Manuel Sobrinho Simões, a quem interessam “as perguntas”, confessa, em entrevista à agência Lusa.

Neste “Ciclo da Vida”, as estações do tempo escolhidas são as do ano, o ritmo “mais natural”.

“Acho muita graça ao ritmo diário, o da manhã e o da tarde, ou as marés – essas até são mais complicadas, porque são de seis em seis horas, e variam muito. O mensal é artificial, [os meses] foram decididos de maneira muito arbitrária”, começa por detalhar.

Já as quatro estações do ano são naturais, “porque a Terra, uma vez por ano, passa por ali”.

O que é também natural é associar a Primavera, Verão, Outono e Inverno à infância, adolescência, à idade adulta e à velhice.

É aí que o espírito inquisidor do médico ataca: “Com o esticar da vida, há, de repente, o aparecimento de protagonistas em que nunca tínhamos pensado”.

Por isso sugere que se considere a “ultravelhice e a subvelhice”, termo que prefere a “pré-velhice”, porque “há pessoas que são subvelhos e nunca ficam velhos”.

Mas, num cenário em que se vive cada vez mais e se nasce cada vez menos, fases que sempre existiram ganham agora um novo protagonismo, “por exemplo, o recém-nascido ou mesmo o feto”, mas também a adolescência, que cada vez mais invade a idade adulta, com diferentes especialistas a manter que termina aos 21 anos, outros que vai até aos 24, e há até quem a ponha a chegar aos 30.

“A adolescência é agora, também, já um produto cultural e civilizacional”, considera.

Mas se a ciência, particularmente a medicina, ganhou ao ser humano novos ciclos, e tornou outros mais relevantes, agora tenta travar o que, com tempo de vida, o Homem roubou à Natureza.

“Está a haver uma compressão grande das quatro estações em duas, com exageros, quer para o frio, quer para o calor”, refere.

As voltas ao tempo, no ambiente e no organismo, vão em sentido inverso, umas “comprimiram, e as outras estão-se a esticar, esticar, esticar”, mas em ambas parece ter vincado a ação humana. “Isso é arte”, diz Sobrinho Simões.

“O que é importante é a influência do Homem. O Homem é que mudou tudo. A própria perceção das coisas – os pintores que desenharam assim ou assado, eles são marcados pela sua própria perceção no tempo em que escreveram ou desenharam aquilo”.

Essa influência pode ser vista de dois modos: “Se agora quiser ser muito cínica, é o poder, e, se não quiser ser totalmente cínica, é muito perceber o mundo”.

Para além dos ciclos naturais, há uma dimensão sociológica que também despertou a curiosidade do investigador, que considera “um espanto ver os desenhos da Europa”.

“Não aparece lá nenhum negro, nem nenhum asiático. Não me meti nisso, mas tinha uma pergunta que o Dr. Corino [de Andrade, investigador e neurologista que esteve na fundação do ICBAS] faria, que é ‘porque raio só aparecem brancos?’”, questiona.

O investigador critica a visão que considera que olha para aquela perspetiva eurocêntrica ou ocidental “como se isto fosse a verdade”.

“Não é, é daquele grupo”, sublinha, destacando ainda que, “no século passado, quando os retratos da exposição são feitos, e no anterior, as pinturas representavam 5% a 10% da população. Os outros 90% a 95% dos portugueses eram invisíveis”.

E “continuam, infelizmente, o que é monstruoso, tendo nós dado um salto tão grande da qualidade de aspetos muito formais, como a democracia representativa, mas continuamos a ter dois milhões de tipos na pobreza, e dois terços dos portugueses ganham o salário mínimo nacional. Como é que você vai fazer quadros sobre as estações se há estas pessoas?”.

Para Sobrinho Simões, a resposta está no prefixo “com”: “O D. Tolentino [de Mendonça] diz ‘olhe que contacto é com tacto’. E é conversar e conviver e compromisso. E sempre o Outro, que falta muito”.

Em relação aos quadros da mostra, como na vida, somos espectadores, “e não estamos a mexer, mexemos pouco com os outros”. “Somos muito centrípetos, e devíamos ser mais centrífugos, por isso somos tão maus em compromisso”.

A esse propósito, lembra a situação política atual, em que falhou o acordo.

“Quer dizer, não ter a necessidade de pensar com os outros e fazer compromisso, com acordos… De novo, estamos a discutir uma coisa com muita graça, que é o valor que vai para além da Natureza. A Natureza meteu-se com a Humanidade, e dali veio uma coisa filha da mãe, porque o Homem não tem graça nenhuma. É do pior”.

Foi, aliás, a crueldade que nos trouxe até aqui: “Não é um gene, mas é um comportamento que não é altruísta. É muita seleção individual e seleção tribal. A componente do altruísmo recíproco é uma exceção”, explica.

É especialista em cancro, como faz questão de frisar sempre que a pergunta foge para outra área, e crê que a humanidade é inerentemente cruel, mas continua a olhar para o futuro, “porque é uma tentativa de fugir à morte”, até porque “é muito raro um gajo não morrer”, brinca.

E é com olhos postos no futuro, apesar de ser “um homem do passado”, que está “à rasca para apanhar o presente” que encerra o texto de abertura da exposição, perguntando “como será a representação de ‘O Ciclo da Vida’ dentro de 50 anos?”.

“Esta exposição é sobre pessoas”, vinca, instando a quem visita que pergunte “porquê e para quê? Sempre a perguntar”.

Para essa reflexão, convida todos a visitarem a mostra instalada no ‘foyer’ do ICBAS.

A mostra está patente até 07 de janeiro de 2022 e estão programadas duas visitas orientadas com os comissários, a primeira na quinta-feira, das 13:30 às 14:00, e a outra a 23 de novembro, no mesmo horário.

LUSA/HN

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