Ricardo Fernandes: O GAT mudou o panorama do VIH em Portugal

26 de Novembro 2021

No âmbito das comemorações dos 20 anos, Ricardo Fernandes, diretor executivo do Grupo de Ativistas em Tratamentos, faz um balanço da atividade do GAT e conclui que, em duas décadas, esta organização não governamental conseguiu mudar a história do VIH no nosso país. 

No âmbito das comemorações dos 20 anos, Ricardo Fernandes, diretor executivo do Grupo de Ativistas em Tratamentos, faz um balanço da atividade do GAT e conclui que, em duas décadas, esta organização não governamental conseguiu mudar a história do VIH no nosso país. 

HealthNews (HN) – O GAT comemora este ano 20 de atividade. Qual o balanço que faz do trabalho que realiza junto das pessoas que vivem com VIH? 

Ricardo Fernandes (RF) – O GAT é um exemplo de ativismo e de advocacia. Mudou o panorama do VIH em Portugal. No início, estava pensado como uma organização puramente de ativismo político, mas não estávamos a conseguir convencer nem os decisores políticos, nem outras organizações não governamentais, da necessidade de empreender ações que considerávamos essenciais. Assim, alterámos os nossos estatutos para podermos passar a prover serviços diretos à comunidade. Na minha perspetiva, esse foi um momento “histórico”.

Nesse âmbito, destaco a introdução do teste rápido do VIH em Portugal que, no contexto comunitário, se deveu ao GAT. A sua utilização era discutida a nível mundial, e até a nível nacional pela Coordenação da Luta Contra a SIDA, mas ainda ninguém o tinha começado a fazer de uma forma estruturada. 

Entre 2003 e 2005, as pessoas tinham que esperar vários dias pelos resultados dos testes, nomeadamente nos Centros Anónimos de Atendimento e Diagnóstico (CAD). Muitas não voltavam para ir buscar os resultados e, obviamente, não era possível encaminhar as pessoas com resultados positivos para tratamento, o que tinha um grande impacto não só a nível individual mas também em termos do controlo da epidemia. O teste rápido era, assim, uma ferramenta fulcral porque as pessoas tinham a resposta no momento e, a partir daí, era possível fazer coisas. 

Uma das grandes inovações que o GAT trouxe a Portugal foi a sua política de intervenção/ação, baseada na evidência que já existia e também naquela que nós próprios íamos produzindo.  Essa investigação do ponto de vista comunitário, recorrendo por vezes a parcerias com a academia, foi muito importante porque havia a necessidade de chegar a algumas populações às quais o Serviço Nacional de Saúde não chegava. 

De destacar ainda que o GAT introduziu o método de trabalho denominado “Greater Envolvement of People Living With VIH/AIDS”, que implica envolver, de maneira significativa, as pessoas com problemas na resolução desses mesmos problemas. Assim, quando iniciámos os serviços, todos tinham como base a comunidade, ou seja, os pares. Essa é a grande diferença entre os serviços prestados pelo GAT em relação a outras organizações.

Mais tarde, houve também um trabalho político muito importante por parte do GAT na disponibilização do tratamento para a hepatite C, uma das grandes co-infeções das pessoas que vivem com VIH. O tratamento para todos, a um preço sustentável por parte do Estado, é uma conquista única de Portugal. Muitos países da Europa só tratam um determinado tipo de doentes.

HN – O primeiro serviço do GAT, o Checkpoint LX, fez 10 anos em 2021, tendo sido reconhecido pela própria Organização Mundial da Saúde como um exemplo de Boas Práticas. Quais são os seus objetivos?

RF – Basicamente, o GAT Checkpoint LX começou por ser um centro de rastreio rápido e anónimo do VIH. No ano seguinte, passamos também a disponibilizar o teste rápido para a sífilis e, dois ou três anos depois, testes para as hepatites virais. 

Entretanto, percebemos que o que estávamos a oferecer não era suficiente do ponto de vista das necessidades da comunidade. Então, transformamos o GAT Checkpoint LX num centro de saúde sexual de homens que têm sexo com homens. Sempre com a visão de a comunidade trabalhar com a comunidade, ou seja, todas as pessoas que trabalham no Checkpoint LX são pares, incluindo os médicos e enfermeiros.

É um espaço altamente diferenciado, associado a uma componente de investigação social. Temos no GAT Checkpoint LX uma das maiores coortes da Europa de homens que têm sexo com homens. Esta coorte permite-nos observar e acompanhar uma série de fatores da dinâmica das infeções ao longo do tempo, e dirigir as baterias, do ponto de vista da prevenção e das nossas atividades, para essas populações. 

O GAT Checkpoint LX foi reconhecido pela OMS e pela ECDC como um exemplo de Boas Práticas porque, além de ser gratuito, veicula informação de saúde correta, sem juízos morais, efetua atos médico e de enfermagem e reencaminha as pessoas para o Serviço Nacional de Saúde, quando não podem ser realizados nas nossas instalações. Por outro lado, o GAT Checkpoint LX alterou a dinâmica da infeção por VIH.

HN – De que forma?

RF – Passámos a testar mais esta comunidade, que anteriormente era “late presenting”, ou seja, de apresentação tardia. As pessoas chegavam mais tarde aos cuidados de saúde, com situações mais complexas. 

Com a introdução do GAT Checkpoint LX passámos a diagnosticar e a tratar mais cedo e mais rapidamente.

HN – Nos serviços de saúde sexual do GAT dirigidos a outras populações, a dinâmica é idêntica?

RF – Todos os centros de tratamento funcionam da mesma maneira: o máximo de pares possíveis; testes rápidos; consultas de Infeções Sexalmente Transmissíveis (IST); programas de investigação da população e das nossas ações. 

No GAT Intendente, a única diferença é que se dirige a pessoas que fazem trabalho sexual, migrantes de origem brasileira e pessoas trans. São grupos diferentes e, portanto, adaptamos os nossos serviços às suas necessidades.

Têm necessidades muito específicas quer do ponto de vista cultural e linguístico, quer dos espaços onde vivem.

O GAT Afrik trabalha muito em proximidade, desloca-se aos bairros e aos centros comunitários. No futuro próximo, pretendemos abrir mais serviços.  

HN – O GAT In-Mouraria, também reconhecido pela OMS, tem características um pouco diferentes?

RF – Possui uma vertente de saúde sexual, testagem para o VIH, sífilis e hepatites, mas é sobretudo um serviço de redução de danos para pessoas que usam drogas e pessoas em situação de sem abrigo. 

Fazemos intervenções de troca de seringas, cachimbos para consumo fumado, intervenções médicas e de enfermagem para o cuidado e tratamento

de feridas e outras mazelas relacionadas com o consumo. Por outro lado, proporcionamos informação às pessoas e, caso seja sua vontade e pedido, encaminhamo-las para eventuais tratamentos e recuperação.

Mais recentemente, iniciámos no GAT In-Mouraria uma consulta descentralizada para o tratamento da hepatite C, em parceria com o Centro Hospitalar Lisboa Central. Trabalhar em proximidade permite que estas pessoas, que nem sempre se conseguem organizar para se tratarem no SNS, encontrem um sítio onde possam ter todas as intervenções. 

O trabalho de pares e o facto de ser um serviço de “baixo linear”, ou seja, não exigimos muito às pessoas para acederem ao serviço, como quase todos os do GAT, permite-nos receber pessoas que provavelmente não conseguem aceder a outras respostas.  

É um projeto único, inovador, que está a correr muito bem e que demonstra que uma pessoa que está em uso ativo de drogas ou que já usou drogas poderá também curar-se da hepatite C. 

HN – Qual é o objetivo do GAT Housing- First, outro projeto inovador que faz parte de um desafio lançado pela Câmara Municipal de Lisboa?

RF – Visa criar condições de habitabilidade para utilizadores de drogas, população LGBT envelhecida ou população com VIH sem-abrigo. É um trabalho muito duro e complicado porque nem todas as pessoas estão preparadas para viver numa casa. Há todo um trabalho que tem de ser feito pelos psicólogos, assistentes sociais e terapeutas, para que isso aconteça. 

É também um projeto que acarinhamos muito e que nos vem trazer soluções que faltavam a outros serviços do GAT. Teve início há apenas um ano, mas já temos muitas pessoas a viverem em apartamentos. Esperamos que seja um serviço com grande impacto na comunidade. 

HN – De quantas unidades móveis dispõe o GAT Move-se?

RF – Neste momento são três porque usamos uma da Câmara Municipal de Almada durante alguns dias da semana. O GAT Move-se é basicamente um serviço criado para debelar ou “remendar” a ausência que existia destas intervenções junto das populações que vivem na Margem Sul do Rio Tejo. Demonstramos também a necessidade de outras intervenções mais estruturadas, consubstanciadas na abertura, em setembro passado, do GAT Setúbal e do GAT Almada. 

Enquadrado nas comemorações dos 20 anos o GAT, estes novos serviços são uma “mistura” de todos os serviços que temos em Lisboa, ou seja, são centros de saúde sexual e de redução de danos provocados pelo consumo de drogas para uma série de populações. 

Do ponto de vista do VIH, mais de 50% da epidemia está concentrada na área da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. Faz todo o sentido que tenhamos centros fixos em Setúbal e Almada, onde possamos fazer muito mais testes rápidos, uma oferta de redução de danos e de saúde sexual mais abrangente.

O GAT Move-se, juntamente com o GAT Setúbal e o GAT Almada, são respostas que visam iniciar a expansão para a Margem Sul, no sentido de ir ao encontro das necessidades das populações mais vulneráveis ao VIH, hepatites, tuberculose e IST.

HN – Como é que os serviços do GAT conseguiram manter-se em funcionamento durante a pandemia de Covid-19?

RF – Graças ao esforço hercúleo da nossa equipa. Numa fase inicial foi muito complicado porque havia falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI). Utilizámos as máscaras que tínhamos adquirido para outros fins e limitamos os serviços em algumas situações. Mas nunca fechámos completamente.

Por outro lado, ao longo do ano do ano de 2020 fomos fazendo alterações nos nossos espaços para podermos operar em plena pandemia. Fizemos obras em quase todos os nossos espaços para melhorar a ventilação e aumentar o número de gabinetes, de modo a aumentar a segurança. 

Os dois primeiros meses do primeiro confinamento foram mais complexos mas, só para ter uma ideia, em 2020 realizámos 45 mil testes de VIH, sífilis, hepatite B e C, sensivelmente o mesmo número realizado em 2019. 

A partir do momento em que começou a haver mais EPI e percebemos como nos podíamos proteger, voltámos a trabalhar a todo vapor. 

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

ULS de Braga certifica mais 35 profissionais no âmbito do Programa Qualifica AP

A Unidade Local de Saúde de Braga (ULS de Braga) finalizou, esta semana, o processo de certificação de mais 35 profissionais, no âmbito do Programa Qualifica AP, uma iniciativa desenvolvida em parceria com a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N), através do Centro Qualifica AP.

PCP apresenta medidas para “inverter a degradação” do SNS

O PCP apresentou esta sexta-feira algumas medidas urgentes para “inverter a degradação” do Serviço Nacional de Saúde (SNS), criticando as “políticas de vários governos” de PS, PSD e CDS, que abriram “caminho para a destruição” daquele serviço público.

DE-SNS mantém silêncio perante ultimato da ministra

Após o Jornal Expresso ter noticiado que Ana Paula Martins deu 60 dias à Direção Executiva do SNS (DE-SNS) para entregar um relatório sobre as mudanças em curso, o HealthNews esclareceu junto do Ministério da Saúde algumas dúvidas sobre o despacho emitido esta semana. A Direção Executiva, para já, não faz comentários.

ULS de Braga celebra protocolo com Fundação Infantil Ronald McDonald

A ULS de Braga e a Fundação Infantil Ronald McDonald assinaram ontem um protocolo de colaboração com o objetivo dar início à oferta de Kits de Acolhimento Hospitalar da Fundação Infantil Ronald McDonald aos pais e acompanhantes de crianças internadas nos serviços do Hospital de Braga.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights