António Alvim Médico de Família

O futuro da MGF- O meu contributo para o debate

05/19/2022

A APMGF aproveitou o Dia Mundial do Médico de Família para lançar o debate sobre o futuro da MGF  E esta iniciativa não podia ser mais oportuna num momento em que se perspetiva que mais de 2 milhões de utentes ficarem sem Médico de Família; isto enquanto a Administração concentra o foco numa Contratualização/Avaliação” do tipo “big brother” em que os médicos passam a meros instrumentos.

E muito oportuno também o webinar desta 3ª feira onde o dr. Nuno de Sousa nos explicou a nova contratualização e os seus indicadores. E onde a certa altura disse algo que é paradigmático da perversão que está a ocorrer. Disse algo como “indicador que serve para verificar a qualidade dos registos tendo em vista a avaliação”. Ou seja, o registo clínico deixou de estar centrado no utente e na informação clínica relevante, para passar a estar centrado nos cliques para efeitos de monotorização dos indicadores.

E com isto a própria atenção e energia do médico passa do utente para a contratualização; para todos os cliques…

O contexto atual caracteriza-se pelo desmoronar do SNS e o desmoronar da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários

O desmoronar do SNS

O desmoronar do SNS tem sido claro nos tempos de espera por uma consulta ou cirurgia, muito para além do TMRG, pelas demissões das Direções das urgências hospitalares por todo o País por falta de condições,  pelas  notícias de falência técnica dos hospitais apesar da falta de investimento, e , grave, pela forte desmotivação dos profissionais conforme este estudo da parceria Ordem dos Médicos –APAH,  onde se lê “Analisando os diferentes indicadores obtidos (relatório final), destacam-se o nível de insatisfação dos médicos a exercer no Sector Público, onde cerca de 67% dos respondentes indicam estar pouco ou nada satisfeitos. Em contrapartida, no Sector Privado apenas 16% dos respondentes estão nesta situação. Entre os principais motivos que geram esta insatisfação junto de quem exerce no SNS estão a remuneração base, a falta de recursos humanos e de equipamentos e ainda o excesso de doentes. Nos próximos 12 meses, menos de metade dos médicos que exercem unicamente no sector Público, afirmam querer manter a sua situação, contrariamente aos 78% dos trabalhadores que apenas exercem no sector Privado.

Acresce a demografia médica com aposentação dos médicos dos grandes cursos de Medicina do início dos anos 70 que há quarenta anos encheram os Hospitais e sobretudo os centros de saúde.

A sua saída aumenta, muito, a sobrecarga dos que ficam e compromete a acessibilidade

Neste momento já não há tempo para remendos da fachada. Apenas duas soluções:

– Ou livrar o SNS da limitação do Orçamento de Estado (através de um Seguro Social de Saúde que possibilite o aumento dos recursos financeiros para a saúde em função das necessidades, como tenho vindo a defender, garantindo a sustentabilidade e a qualidade através de uma contratualização esclarecida QARE visando a Qualidade, Acessibilidade, Resultados e Eficiência, mas mantendo a socialização dos custos de acordo com a Constituição, com uma comparticipação diferenciada pelo Estado em função dos rendimentos das famílias) e apostar na maior eficiência possível, a qual só se consegue, com gestão privada em competição, o que tem ainda a vantagem de deixar o investimento para o sector privado. Investimento que o nosso endividamento não permite o Estado fazer. Para quando o Hospital de Todos os Santos?

Mas não se acredita que o Governo do Partido Socialista avance neste sentido.

-Ou temos que aceitar a realidade de “um País, dois Sistemas “e passar a raciocinar e a agir nestes termos. Um Privado para quem pode fazer seguro de saúde (40%), sobretudo na área do ambulatório, e um SNS, mais encolhido para quem não pode (60%) mantendo-se a universalidade em algumas áreas especializadas.

No artigo abaixo, de Setembro de 2021, expliquei o desmoronar da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários. Penso que vale a pena ler.

https://healthnews.pt/2021/09/16/o-desmoronar-da-reforma-dos-cuidados-de-saude-primarios/

A situação descrita no relatório da IGAS (ver o link naquele artigo), que foi mantido secreto, mantém-se; mesmo depois, na sequência do mesmo, ter saído este  despacho 

Não querendo enfrentar as ilegalidades nele descritas, a única reposta foi a revisão

do Decreto Lei das USFs – prometida para 2020 e adiada até ao presente- e manter fechado o acesso ao Modelo B.

Um recém especialista em modelo B ganha mais de 7.000 euros. O dobro dos que estão nas UCSPs e no Modelo A, com o mesmo número de 1900 utentes e num regime de 40 horas. Nas UCSPs (o modelo antigo) ainda têm que dar resposta aos utentes sem médico.

Percebe-se a revolta de quem foi atraído pelo Modelo B para a especialidade de MGF e que agora percebeu que está a pedalar atrás de uma cenoura que nunca alcança (ver mapas de passagens a modelo B no artigo) e que os novos especialistas estejam a deixar os concursos desertos. Sobretudo quando o que têm pela frente são UCSPs degradadas e com muitos utentes sem médico.

A elevada remuneração do Modelo B assentava em 4 pressupostos : Mais utentes por médico (o que deixou de ser verdade desde 2012 quando a carreira médica passou a ser 1900 utentes/ 40 horas e ainda ao atendimento dos sem médico ) , melhor acessibilidade (e para isso se estão a pagar  9 horas suplementares à cabeça), maior eficiência (nas usfs de modelo B receitar-se-ia com mais racionalidade gerando poupanças que chegariam para cobrir a despesas com o aumento salarial) , melhores indicadores de saúde ( que resultariam da monotorização de uma série de indicadores contratualizados anualmente com fins de atribuição de incentivos).

Politicamente este modelo só seria sustentável se se diferenciasse por uma muito melhor acessibilidade e por melhores resultados em Saúde.

Contudo a exigência em relação à acessibilidade foi a mesma (3 semanas) do que para as UCSPs; e as USFs aproveitaram a sua autonomia para, nos seus Conselhos Gerais, aprovarem horários de apenas 35 horas ou pouco mais (e apenas 30 assistenciais)  e com casos de 3 tardes livres por semana em que os utentes não têm acesso ao seu médico de família.

E os Diretores Executivos, que às USFs de Modelo A e UCSPs exigem 40 horas repartidas por manhã e tarde, conforme a lei, aprovam de cruz estes horários ilegais das USF de Modelo B em que pagam à cabeça 9 horas suplementares que não estão integradas nos horários e não são feitas. São 50 milhões de Euros por ano que os Contribuintes pagam sem contrapartida.

Aquilo que era suposto, pela elevada remuneração, permitir uma atividade do tipo liberal sem olhar a horas, converteu-se no seu contrário. Numa lógica de funcionalismo que aproveita de todos os benefícios…

E todas entidades, políticas, administrativas e reguladoras, incluindo o tribunal de contas, assobiaram para o lado.

Não querendo enfrentar os profissionais das USFs a Ministra da Saúde optou por rever o DL conforme anunciou para 2020 mas que só agora está a avançar. Disse aliás que, depois de revisto DL, todas as USFs A com parecer técnico positivo passariam a B. Contudo publicou agora um despacho em conjunto do Ministério das Finanças com o habitual teto de “até 20 USFs” (voltando atrás na promessa de todas as USFs A com parecer técnico aprovado passarem a Modelo B) e “no final de 2022”

Falhada a justificação pela acessibilidade (por culpa corporativismo instalado e o medo do Governo e da Administração em o enfrentarem) resta apostar na complexificação dos indicadores que monitorizam a atividade. E este é o ponto aonde quero chegar. Tão complexos que alguns se tornam inúteis por serem impossíveis de implementar; mas desvirtuam a prática clínica, desviam a energia e o foco do médico no utente, para além de em vários dos indicadores haver claros conflitos de interesses.

A reforma desmorona-se e a ser verdade https://sicnoticias.pt/saude-e-bem-estar/mais-de-mil-medicos-de-familia-podem-pedir-a-reforma-este-ano/

teremos 2,5 milhões de portugueses sem médico de família

E esta será a única resposta possível. Permitir aos utentes do SNS , que o queiram fazer, optar por um Médico de Família Privado deixando o lugar vago no SNS para um utente sem Médico de Família. Para que isto seja possível é preciso que, pelo menos neste caso, o seu Médico de Família do sector Privado lhe possa requisitar exames complementares de diagnóstico e tratamentos comparticipados pelo SNS, passar Certificados de Incapacidade Temporária (baixas), e referenciar para as outras várias instituições do SNS.

Se isto for tornado possível então não haverá falta de Médicos de Família nem utentes sem Médico de Família. Como o Bastonário tem dito, em Portugal não temos falta de Médicos. Temos sim falta de médicos no SNS

A senhora Ministra disse que não poria a ideologia em primeiro lugar. Será verdade? Permitirá que isto aconteça?

 

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