Victor M. Gil, MD, PhD, FESC. FACC Coordenador, Centro de Risco Cardiovascular e Trombose, Hospital da Luz – Torres de Lisboa Professor FMUL

 Aterosclerose subclínica: a “dor que desatina sem doer”

05/29/2022

Nos anos quarenta do século vinte, as doenças cardiovasculares tinham emergido de forma muito nítida, sendo responsáveis por cerca de metade das causas de morte nos Estados Unidos da América. Não havia, nessa altura, o conhecimento dos fatores de risco e a consciência para o desenvolvimento de complicações. A morte do presidente Roosevelt em 1945 por hemorragia cerebral, com antecedentes conhecidos de hipertensão não controlada e insuficiência cardíaca, agitou a comunidade científica, que ficou muito mais desperta e motivada para melhor conhecer as causas destas situações. É assim que nasce a iniciativa de criar um grande estudo epidemiológico prospetivo, tendo sido escolhida a cidade industrial de Framingham, perto da Universidade de Harvard que desde o início deu o enquadramento científico e académico ao projeto. Os fatores de risco cardiovasculares foram sucessivamente identificados e caracterizados pelo grupo Framingham – hipertensão, colesterol elevado, tabaco, diabetes. Estes fatores, a que se junta mais recentemente a obesidade (guidelines de prevenção cardiovascular ESC 2021) são responsáveis por mais de 70% da doença cardiovascular clinica, com morbilidade de 40%, tal como foi recentemente elucidado por Yusuf e colaboradores, no estudo PURE publicado no TheLancet em 2020 (Epub em 2019), que incluiu quase 160000 indivíduos de 21 países dos cinco continentes, com um seguimento de 10 anos. Os fatores de risco “comportamentais” (tabaco, álcool, alimentação errada, falta de exercício físico) destacam-se com um peso relativo de 26,3%, mas o fator de risco isolado mais importante (22,3%), a Hipertensão Arterial, integra o grupo dos chamados fatores de risco “metabólicos”, a que se junta a diabetes, o colesterol não HDL, e a obesidade abdominal. Fatores como o baixo nível educacional (12,5%) e poluição do ar (13,9%) têm também importante expressão. A hierarquização dos quatro principais fatores de risco (por ordem decrescente: hipertensão, maus hábitos alimentares, colesterol-LDL elevado e poluição do ar) não mudou na última década, invertendo-se as posições 5 e 6 – agora mais importante a obesidade e antes o tabaco.

As doenças cardiovasculares (sobretudo a doença isquémica do coração e o acidente vascular cerebral) continuam a liderar as causas de morte e a carga de doença no mundo, com curvas ascendentes não só nos países de menores rendimentos, mas com novas subidas nalguns países de rendimentos mais altos onde as curvas tinham começado a descer (Global Burden of Disease 2019 study).

A aterosclerose pode começar muito cedo na vida, tal como foi notado em autópsias de jovens soldados americanos mortos em combate nas guerras da Coreia e do Vietname e corroboradas por estudos de autópsias de jovens falecidos por causas externas, como o conhecido estudo de Strong, publicado no JAMA em 1999). A prevalência de aterosclerose subclínica em adultos jovens é elevada.

No estudo PESA (2015,  sob orientação de Valentim Fuster) em 4184 jovens adultos assintomáticos (idade média 45,8 anos, intervalo 40-54 anos, 63% sexo masculino) a prevalência foi de 63%. Neste estudo, nos indivíduos com baixo risco calculado pelas tabelas do FHS, a prevalência de aterosclerose subclínica foi de 58%, com formas intermédias a generalizadas em 36%. Sabemos também deste estudo que mesmo em casos com valores baixos, segundo as referências atuais de colesterol-LDL, se pode encontrar aterosclerose, mesmo com expressão multiterritorial. Isto levanta várias questões, entre as quais os fatores adicionais envolvidos na génese e desenvolvimento da placa aterosclerótica, quer o papel de outras lipoproteínas com o a Lp(a), as partículas ricas em triglicéridos, a inflamação (com promissores caminhos terapêuticos em desenvolvimento), a autoimunidade, a hematopoiese clonal, abrindo portas para investigação geradora de novo conhecimento. Neste complexo processo, a trombose tem um papel essencial não só nas fases de agudização associadas a eventos isquémicos, mas também como parte das evoluções de cura regeneradora das placas, com internação do trombo.

A aterosclerose subclínica está longe de ser um processo benigno. A carga aterosclerótica coronária, avaliada pelo score de cálcio, associa-se de forma robusta ao risco de ocorrerem eventos cardiovasculares e à mortalidade de qualquer causa, tal como foi recentemente demonstrado numa coorte do estudo MESA com avaliação durante 13,6 anos de 6814 indivíduos assintomáticos, depois de ajustar para fatores de risco, história familiar e medicação. Se a angina é a ponta visível do iceberg, a aterosclerose subclínica é verdadeiramente “dor que desatina sem doer” não exatamente no sentido arrebatado do poeta, mas na perfídia duma situação insidiosa que está na origem duma patologia ainda em crescimento mundo atual, constituindo não só um desafio diagnóstico, mas também de correção integrada e personalizada tentando alterar a história natural e melhorando a vida das pessoas afetadas

 

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