João Filipe Carvalho, doente com Síndrome do Intestino Curto, 22 anos. «Já batalhei todos os meus demónios e hoje sinto que consegui libertar-me dos traumas antigos»

09/22/2022
“Há cerca de três anos que me sinto bastante desacompanhado, que não tenho médico, equipa que se preocupe ou queira investir em mim”.

“Há cerca de três anos que me sinto bastante desacompanhado, que não tenho médico, equipa que se preocupe ou queira investir em mim”.

HealthNews (HN) – O que aconteceu até se chegar a um diagnóstico de Síndrome do Intestino Curto?

João Filipe Carvalho (JFC) – Tudo aconteceu quando tinha 10 anos. Lembro-me de estar na escola e começar a sentir pontadas muito fortes no estômago.

Fui para casa e daí para a Urgência do hospital. Foi-me diagnosticada gastroenterite e recomendaram que bebesse água. Na segunda vez que entrei no hospital, disseram-me exatamente a mesma coisa e mandaram-me novamente para casa.

A partir daí, as coisas começaram a complicar-se e tive que ser operado de urgência. Foi quando perdi a maior parte dos intestinos. Foi-me explicado mais tarde que possuo uma alteração genética, que só tenho uma artéria que irriga o intestino mas isso só foi detetado, anos mais tarde, em Paris.

O meu estado de saúde foi agravando-se e houve uma fase complicada em que corri alto risco de vida devido a uma sepsis com origem no intestino.

Na sequência de um volvo intestinal, em que o intestino deu um nó sobre si mesmo e começou a perder a irrigação sanguínea e a oxigenação, fiz quatro ou cinco cirurgias em Portugal, nas quais os médicos tentavam retirar a menor quantidade de intestino possível para manter o seu funcionamento normal. No entanto, isto acabou por gerar outras complicações.

Entretanto, a minha mãe fez um trabalho formidável de pesquisa na Internet e acabou por encontrar um rapaz brasileiro que tinha um problema muito semelhante ao meu e que estava a fazer um transplante intestinal multivisceral nos Estados Unidos. Comecei a conversar bastante com ele, a perceber melhor e a interessar-me mais pela minha patologia.

Em França existe um centro de referência e médicos pioneiros nesta área. Foi em Paris que, entre os 11 e os 12 anos, realizei a chamada “anastomose intestinal”, que me proporcionou uma liberdade de vida muito maior, pois até então apenas podia beber sumos e bebidas ou purés com moderação. Desde aí voltei lentamente a comer, apesar de não absorver praticamente nada do que comia.

Foi uma mudança extremamente positiva na minha vida. Entretanto, um exame revelou que ainda tinha entre 11 a 12% de capacidade de absorção intestinal, mas isso não é suficiente para sobreviver sem um aporte calórico externo. Por isso continuo dependente de uma bolsa de alimentação parentérica e de ficar ligado a uma máquina infusora 12 horas por dia…

Essa operação foi muito importante porque me deu muito mais independência. Desde aí, deixei de precisar dos sacos de colostomia e passei a funcionar como uma pessoa normal, pelo menos aos olhos da maioria das pessoas, pois, à noite, continuava a precisar de estar ligado a uma máquina para no dia seguinte não estar desidratado e me sentir sem energia.

HN – Como reagiu ao impacto da doença na sua vida?

JFC – Sem dúvida que foi uma volta de 180 graus na minha vida.

Passei de ser um miúdo gordinho e brincalhão para um rapaz magro e apático em questão de dias. No início tinha muitos complexos em relação às várias cicatrizes e aos tubos. A maior parte dos meus amigos ajudaram-me muito, se calhar sem se aperceberem, visitando-me no hospital e jogando “Pokémon” comigo. Lembro-me de receber bastantes presentes dos meus pais para que ficasse entretido nessa fase complicada.

Tive uma infância diferente dos meus colegas, mas sempre com o apoio incondicional da minha família, que esteve sempre lá e sacrificou muita coisa por mim. As boas memórias de amigos, que me ajudaram muito nessa fase mais difícil, prevalecem, mas também tenho algumas menos boas que alimentaram alguns traumas com que ainda hoje luto.

Lembro-me de um acontecimento em específico, em que estava com o meu melhor amigo na altura. Recordo-me de estarmos a mudar de roupa e ele ter ficado claramente perturbado ao ver todo aquele “campo de guerra” na minha barriga. Daí surgiu insegurança e vergonha do meu corpo. Ir à praia era um desafio porque me sentia desconfortável com os olhares das pessoas ao verem algo fora do comum. Fiquei muito magro, branco e inseguro, não sabia como lidar com a situação e acabei por me isolar até das pessoas que só queriam o meu bem.

Felizmente, a situação evoluiu para um paradigma bem melhor. Ganhei peso, cor e uma personalidade forte. Hoje em dia, consigo olhar para tudo de forma diferente mas foi uma fase difícil, sem dúvida.

HN – Como é que a situação foi evoluindo ao longo dos anos?

A situação foi evoluindo para o lado positivo, ganhei auto-estima, auto-confiança e até comecei a treinar artes marciais que ajudaram muito na questão da disciplina.

A minha pré-adolescência foi engraçada. Felizmente encontrei um grupo de amigos de que era bastante próximo e passava todos os dias com eles. O meu amigo mais próximo, o Ricardo, foi um pilar importante para mim na altura. Sinceramente, fiz um trabalho formidável a esconder a minha patologia da maior parte das pessoas. Até muitos professores não faziam ideia de que eu era portador de uma doença rara, até porque na altura fazia questão e preferia que as pessoas me tratassem como uma pessoa normal.  Sempre detestei a condescendência de algumas pessoas de me tratarem como um “coitadinho”. Acho que essa foi a razão de eu querer fazer tudo o que as outras crianças faziam na altura. Não queria sentir que a minha patologia me limitava de forma alguma, até ao ponto de me esquecer dela durante o dia. Mas era sempre relembrado à noite, quando tinha de encarar de frente a realidade. Desde do 7º até ao 11ºano escolar conseguia conciliar bem a minha vida com a escola mas penso que a realidade começou a frustrar-me mais quando os meus amigos começaram a fazer coisas que implicavam grandes sacrifícios para mim, como sair à noite, ir de viagem, ir à piscina ou até dormir em casa de um amigo. Aos 17 tive a minha primeira namorada e comecei a lidar bem melhor com a minha doença, encarando-a e aprendendo a usá-la como fonte de motivação.

Desde o início que fui seguido no Hospital Dona Estefânia. Tem corrido tudo bem, mas devido a ter um cateter central, tenho sempre uma maior probabilidade de fazer sepsis. Por isso, quando tenho febre, preciso sempre de ir para a urgência para ficar internado e fazer uma serie de antibióticos pela veia. Essa é a pior parte, pois muitas vezes o tratamento não é o mais adequado, destabilizando outros componentes essenciais para o meu bem estar geral.

Atualmente como o que quero mas existem algumas comidas que evito por me causarem algum desconforto. Uma das vantagens é que posso comer um frasco de Nutella inteiro e não engordo!

HN – Quais são as medidas de estilo de vida que adotou na tentativa de controlar a doença?

JFC – Nos últimos tempos tenho começado a dar mais importância a um estilo de vida saudável: fazer exercício, comer bem, descansar…Acima de tudo porque sempre fui um pouco de extremos. Por sentir que perdi a minha infância e parte da adolescência, quando tive novamente a oportunidade de agarrar esse tempo perdido, se calhar agarrei-o com muita força.  Foi uma força necessária para chegar onde estou hoje mas, de facto, sinto que vivi sem pensar nas consequências. Hoje, já estou mais maturo e levo as coisas com mais calma.

HN – Quais as implicações de ter de fazer, à noite, esse aporte extra de nutrição parentérica?

JFC – Por vezes incomoda-me e impede-me de fazer certas coisas como, por exemplo, chegar a casa às horas que quero. A pior parte é ter de me ir embora e as pessoas acharem que o faço, não porque preciso de o fazer, mas porque quero. É difícil estar sempre a explicar tudo e, por vezes, sinto que as minhas amizades ficam um pouco prejudicadas.

Apenas devido a um sacrifício económico dos meus pais é consegui ter a sorte de ter uma máquina infusora portátil para fazer a nutrição parentérica. Consigo usá-la de vez em quando, apesar dos sistemas custarem cerca de 20 euros de cada vez que a uso. Não é possível sustentar essa despesa todos os dias mas é uma forma de poder ter alguns dias de lazer. Já consegui viajar e visitar alguns países. Estou muito grato por os meus pais terem conseguido dar-me essa possibilidade. Se não fossem eles, teria de estar ligado à máquina fixa que tenho em casa.

HN – Hoje, já consegue ultrapassar com facilidade os momentos de desânimo?

JFC – Já batalhei todos os meus demónios e penso que, hoje em dia, me libertei de (quase) todos os traumas antigos. Basicamente, fui obrigado a ser otimista e o mais determinado e teimoso possível, indo muitas vezes contra a recomendação médica muitas vezes. Senão, tudo teria sido ainda mais difícil.

HN –  Considera que, neste momento, está a receber o melhor tratamento médico?

JFC – Esta é uma parte sensível porque sendo o mais sincero possível, a equipa multidisciplinar do Hospital Dona Estefânia não tem mais ninguém da minha idade com esta síndrome. Normalmente são bebés.

Por isso tive que fazer uma transição para um serviço de adultos no Hospital dos Capuchos, que não tem, nem nunca teve, ninguém com a minha patologia.

Há cerca de três anos que me sinto bastante desacompanhado, que não tenho médico, equipa que se preocupe ou queira investir em mim. Sei que existe um novo medicamento que faz aumentar a absorção intestinal mas ainda não tive acesso a ele.

Para os adultos faltam médicos que tenham interesse nesta patologia e queiram formar equipas multidisciplinares.

A parte positiva é que eu sempre decidi experimentar por mim mesmo. Por vezes, bato com a cabeça, mas tenho aprendido a fazer tudo e sinto-me muito orgulhoso de ser cada vez mais independente.

Eu sou o principal gestor da minha doença, fazendo não necessariamente da maneira que me ensinaram, mas da forma como melhor funciona comigo. De certa maneira, sinto que estou a desbravar o mundo à minha maneira. Aprendi muito sobre mim e apercebi-me de que ninguém sabe tudo. Todos somos humanos e todos erramos.

Fotografia de Cris Coutinho

 

 

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