António Alvim: “O Ministro da Saúde foi duplamente assassinado no debate do Orçamento pela bancada do PS”

12/05/2022
O chumbo à criação de Unidades de Saúde Familiar modelo C é visto como um “assassinato” ao ministro da Saúde, segundo António Alvim. As propostas de Manuel Pizarro foram alvejadas pelo “esquerdismo bacoco” que insiste em “copiar o sistema soviético”. Para o comentador habitual da HealthNews, os “motivos ideológicos” são os principais responsáveis pela rotura do SNS. “O Governo é o responsável pela atual crise do SNS, pois continua a manter os médicos mal pagos”, remata.

HealthNews (HN)- O ministro da Saúde abriu a possibilidade para a criação de Unidades de Saúde Familiar modelo C por um “período transitório”. Esta medida seria a ‘chave de ouro’ para resolver a falta de médicos de família?

António Alvim (AA)- .Na sexta-feira ficamos a saber que o número de utentes sem Médico chegou aos 1 456 369. É uma situação dramática em Lisboa e na Grande Lisboa. Por exemplo em Lisboa existe, mais de 150 mil utentes sem MF, na Amadora 57 mil, em Loures/Odivelas 96 mil, em Sintra 121 mil. As USF modelo C poderiam resolver diversos problemas. Estas unidades poderiam atrair muitos médicos reformados, médicos que optaram por ficar fora do SNS e médicos que estão a pensar em sair do SNS.

A posição do ministro da Saúde sobre esta matéria é interessante, mas Manuel Pizarro foi contrariado logo na semana a seguir no Parlamento.

HN- O Parlamento chumbou as propostas apresentadas sobre esta matéria, com votos contra da maior parte da bancada parlamentar, incluindo do Partido Socialista. Como olha para a falta de coordenação entre o partido e o Governo?

AA- Eu dira que o Ministro da Saúde foi duplamente assassinado no debate do Orçamento pela bancada do PS, onde está sentada a ex-ministra Marta Temido; bancada que expressamente chumbou, por esquerdismo bacoco, a hipótese de Modelos C; e por outro lado aprovou um orçamento em que não fala em novas USFs de Modelo B (o que reforça a descrença instalada nesta solução, que já foi uma forma de atrair os médicos para esta especialidade e para o SNS, mas em que aqueles já não acreditam) e em que o aumento do financiamento para o SNS não dá sequer para cobrir a inflação, pelo que o funcionamento do SNS em vez de melhorar vai piorar.

O Ministro ficou sem qualquer instrumento para atuar.

HN- O Bloco de Esquerda, um dos partidos mais críticos, afirmou que se trata da “privatização” dos cuidados primários de saúde. É verdade?

AA- Temos a mania que copiamos o sistema de saúde britânico (modelo de Beveridge), mas, na verdade, copiamos o sistema soviético (modelo Semashko)… No Sistema Inglês os médicos de família sempre foram privados. Sempre foram Modelo C. Mas qual é o problema de haver unidades privadas convencionadas que até podem sair mais económicas que as públicas? O que importa é resolver o problema dos utentes.

HN- Agora que soluções existem?

AA-Agora a única solução que resta, se o Governo se importa realmente com a saúde dos que não têm médico de família é permitir que a estes, sempre que recorram a um Médico de Família privado, este lhes possa requisitar exames complementares de diagnóstico pelo SNS, como acontece com as receitas de medicamentos, referenciar para as consultas hospitalares no SNS e passar baixas por doença.

E igualmente àqueles que voluntariamente optem por ter um Médico de Família Privado (e muita gente o tem), deixando o lugar vago para quem precisa e não tem médico de família no SNS. Porque o problema não é a falta de Médicos de Família, é a sua falta no SNS. E enquanto muitos têm um MF em duplicado, um no SNS e outro no Privado, muitos outros nem num lado nem noutro

HN- Ao Governo tem sido imputada a responsabilidade sobre a rotura do SNS que, aos olhos de alguns, tem impedido a introdução de certas medidas por “questões ideológicas”. Concorda? 

AA- Só pode ser explicado por motivos ideológicos ou estes usados para esconder que por falta de dinheiro. Austeridade portanto. O que é que fixou os médicos ao SNS? Foi o regime das 42 horas com exclusividade. Estes profissionais eram bem pagos. Isso acabou nos governos do PS restando as 35 horas simples muito mal pagas.  Em 2012, os sindicatos acordaram o aumento das 35 horas semanais para as 40 e o aumento de utentes por médico de família, mas sem o subsídio de exclusividade. Os médicos ficaram a perder. Esse acordo, que era uma medida pontual durante o período de crise, tem dez anos e até agora não foi revisto. Portanto, o Governo é o responsável pela atual crise do SNS, pois continua a manter os médicos mal pagos… Em Lisboa, um médico que entre como especialista recebe 1.600 euros líquidos. Vai quase tudo para pagar a casa. Isto leva a que haja falta de médicos.

HN- Em 2016 foi prometida a atribuição de médicos de família a todos os portugueses. Passados seis anos de governação do PS esta promessa continua por cumprir. Que medidas devem ser implementadas para resolver este problema? 

AA- As soluções poderiam passar pelas 42 horas com exclusividade ou o acesso fácil ao Modelo B; pela criação de USF modelo C para atrair médicos reformados e médicos que não querem trabalhar no SNS ou, inclusive, pela redução do horário de trabalho. Hoje em dia, os médicos priorizam o equilíbrio entre a vida profissional e pessoal. Estes profissionais querem e precisam de ter tempo para a família. A verdade é que é mais fácil arranjar essas soluções no modelo C do que no sistema público.

HN- Está a preparar-se para criar uma USF modelo C. Tendo em conta a rejeição deste modelo por parte do Parlamento irá ainda assim prosseguir com esta ideia?

AA- Estou a criar um centro de saúde privado no Lumiar. Como o ministro mostrou aquela abertura, na semana seguinte direcionei uma carta ao Ministério da Saúde a indicar que me disponibilizava para candidatar a minha Unidade a um Modelo C que cobriria dez mil utentes, sendo que no Lumiar há mais de 17 mil utentes sem médico de família. Não recebi qualquer resposta e na semana passada surgiu a notícia de que o Parlamento tinha chumbado o Modelo C.

A constituição obriga o Governo a dar médicos de família às pessoas. Quando o Estado não consegue cumprir esta necessidade tem que contratualizar com o setor privado. Está na Constituição, está na lei de bases da saúde, está no estatuto do SNS e nas competências do seu “CEO”. Portanto, é algo que está previsto na lei.

Mas em termos de “negócio” o setor privado só tem a agradecer a este governo socialista pelo fluxo de utentes que lhe está a chegar pela falta de resposta do SNS.

HN- Segundo dados da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), este ano mais de 600 médicos entregaram os papéis para a aposentação (houve mais médicos a pedir a reforma do que em 2021). Em que medida esta realidade afeta as expectativas de melhoria da prestação de cuidados do SNS?

AA- A situação vai piorar. Neste momento, a situação nas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados é aflitiva… Onde havia oito médicos, hoje só há dois. Os médicos não estão a conseguir dar reposta. É um caos nessas unidades. Veja-se uma reportagem recente sobre o que se passa na UCSP de Algueirão (Sintra). É algo que não pode continuar.

HN- E olhando para as verbas previstas no Orçamento de Estado para a Saúde, considera que vai ser possível mudar as condições que hoje existem no SNS?

AA- Não. O documento que foi apresentado nem sequer fala de novas Unidades de Saúde Familiar modelo B que é outra forma de conseguir fixar os médicos de família no SNS. Estes profissionais já perceberam que só há modelos B na altura de eleições. Recordo que, em 2019, Marta Temido disse que não haveria mais modelos B enquanto não fosse revista a lei das USF. Estamos em 2022 e essa revisão ainda não foi feita. Tenho conhecimento de um projeto entregue em julho, mas não o conheço. Portanto, não sei se essa revisão vai ou não para a  frente.

HN- O processo de escolhas para a área de especializaç vão do Internato Médico de 2022 terminou na segunda-feira. Apesar de se ter registado um recorde de vagas ocupadas (1.883 médicos escolheram especialidade), 161 vagas ficaram por ocupar. Qual a leitura que faz destes dados?

AA- Isso demonstra que há médicos que não querem trabalhar no SNS e que preferem ir para as urgências dos hospitais privados, ou simplesmente ir fazer outra coisa. O Governo tem que encarar esta realidade. O único ministro que tem peso é o das Finanças e a Saúde não pode estar dependente do ministro das finanças. É preciso repensar o modelo de financiamento da Saúde em Portugal, mas ninguém ousa pegar nesse tema.

HN- Mas com a nova Direção Executiva do SNS e o novo estatuto não considera que pode haver melhorias no sistema de saúde? 

AA- Essa é outra questão… Estão-nos a enfiar barretes sucessivos. Inicialmente foi dito que haveria um CEO do SNS e não foi o que aconteceu. Temos um Diretor-Geral que não tem poderes a nível de contratações, vencimentos, instalações, sistema informático e recursos humanos.

Outra ideia que nos está a ser vendida é o alargamento do horário nos centros de saúde ao fim de semana. É outra mentira. Estive a olhar para o mapa e, em Lisboa, a única unidade que aumentou foi Sete Rios que passou a atender utentes ao domingo das 10h00 às 18h00 quando antes era até às 16h00. Aumentaram duas horas o horário de atendimento, mas a maior parte das horas de um fim-de-semana não são cobertas…

Sou do tempo em que havia SAP – Serviço Atendimento Permanente -, nos cuidados de saúde primários, abertos das 8h00 às 00h00. Tudo isso acabou. Assim como há muitos anos acabou o regime das 42 horas com exclusividade consagrado no celebre 73/90 acordado entre os sindicatos médicos e a Ministra Leonor Beleza que permitiu encher o País de Médicos de Família.

E por isso agora a falta de médicos, a saga das filas à porta dos centros de saúde para uma vaga no dia, e as urgências hospitalares entupidas… estamos claramente a piorar, não a melhorar

E o parlamento recusou ao Ministro qualquer instrumento para dar a volta à situação. É por isso que digo que o Ministro já foi assassinado…

Entrevista de Vaishaly Camões

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