Acácio Gouveia Especialista em Medicina Geral e Familiar

Ideologias & paradoxos

07/18/2023

“(…) quem não olha adiante dá com o batel à costa”
António Prestes in ‘Auto dos dois irmãos’

A ideologia

“Só dogmáticos podem pretender explicar a vida social, (…) com a aplicação de fórmulas imutáveis ou com a citação de textos.”
Álvaro Cunhal

 

Sem ideologia não há política. A ideologia é indispensável ao exercício da política. Perante a complexidade da realidade, as ideologias atuam heuristicamente na análise e, sobretudo, na ação política. Perante a multiplicidade de opções, elas afunilam o leque de escolhas excluindo as que não sejam conducentes com o ideário em causa, facilitando assim o processo de seleção. Ou seja, economizam e, portanto, simplificam a praxis dos políticos.

Sendo diversas e divergentes, podemos concluir que não podem todas ser verdadeiras e arriscamos mesmo a afirmar que em nenhuma encontraremos a verdade total e imutável. Por isso, é risco inerente a qualquer ideologia induzir em erro os decisores, ao excluir a decisão correta, que não seja coincidente com a convicções ideológicas dos políticos em questão. O bom político será, pois, o que alia fidelidade a uma ideologia particular à flexibilidade, que lhe permite, pontualmente, agir fora dessa norma ideológica. Quer dizer, quando o ideário não comporta a resposta adequada a um dado problema, o político deve optar pelo pragmatismo à revelia daquele. Caso contrário, a rigidez, imposta por uma lealdade ideológica absoluta, conduz ao risco de se cometerem erros políticosgraves, embora ideologicamente corretos.

 

Os paradoxos

“Para compreender os paradoxos é preciso ser inteligente, mas para segui-los é preciso ser estúpido.”
Pitigrilli

Exposto o introito, vamos ao que interessa: analisar a estratégia gizada pelo ministério da saúde (MS) para minimizar o magno problema da escassez de médicos de família (MF) no SNS, resultando em mais de milhão e meio de cidadãos a descoberto.

É voz corrente que não há falta de MF em Portugal, sendo que a escassez se encontra no SNS. Ora, se os há fora do SNS, porque não avançar com as USF modelo C, isto é, parcerias público-privadas nos CSP? Esta modalidade de USF, que está prevista na lei, poderia ajudar a diminuir o pool de utentes sem MF. Contudo, parece descartada pelo atual MS, tudo leva a crer por razões ideológicas. A ala esquerda do governo e os partidos seus aliados subscrevem a palavra de ordem “não dar dinheiro aos privados”. Ora, esta teimosia ideológica não permite responder ao problema político – a falta de MF – e, por consequência, renega um valor fundamental do SNS: a acessibilidade. Aí reside o erro político.

Curiosamente, ao recusar o recurso aos MF privados sob a forma de parceria, o objetivo ideológico – privar os privados do financiamento público – não só também não é atingido, como até, paradoxalmente, se revela contra procedente. Obviamente, a escassez de médicos no SNS empurra os cidadãos para os clínicos privados. E, no que toca a paradoxos, não nos ficamos por aqui. A equidade, louvável e judicioso pilar do SNS, eclipsa-se. Ricos, menos ricos e remediados vêm-se obrigados a recorrer à medicina privada, ficando os pobres privados de consultas, o que, convenhamos, está em total contradição com as ideologias do ministro e seus aliados à esquerda.

Mas ainda há mais paradoxos! Face ao drama dos utentes sem MF, informa-nos o MS que existem soluções para prestar cuidados a estes utentes. Ora quem esteja por dentro destas “soluções” – consultas de recurso e afins – sabe que tal argumento é dos tais que prestam péssimo serviço ao bom nome da política, porque é duma falsidade confrangedora. O volume de trabalho que desemboca nestas chamadas “consultas” é esmagador. Perante tal avalanche de tarefas, têm arte de passar à frente as meramente burocráticas (de utilidade nula), ficando para trás as propriamente clínicas. Passo a explicar: o tempo, escassíssimo recurso, requerido para efetuar uma consultazinha, minimamente digna desse nome, é o mesmo que permite emitir três baixas, reproduzir cegamente quatro receituários, e fazer duas transcrições de ECD vindas do hospital e outras três provenientes de consultórios privados. A tentação do clínico, colocado nestas deprimentes consultas de recurso, é despachar rapidamente o maior número de tarefas colocadas sobre a secretária e a prioridade vai tendencialmente para as menos exigentes em termos de tempo, mas também menos úteis. Trocando por miúdos: não basta estarem milhão e meio de utentes privados de MF, também se canalizam boa parte dos escassos recursos, destinados a mitigar esta falha, para secretariar a medicina privada!

Em resumo: o fervor ideológico anti privados tem como resultados: (i) não aliviar o problema da falta de médicos no SNS; (ii) o robustecimento da medicina privada, colocando inclusive recursos do SNS ao seu serviço; (iii) penalizar desproporcionadamente os economicamente mais frágeis, agravando as injustiças sociais.

Uma cajadada, três fiascos! Falha o objetivo político (melhorar a acessibilidade aos CSP), o ideológico (travar o crescimento do exercício privado da medicina) e o misto (reduzir as desigualdades socias).

Um ministro ultraliberal não faria “melhor”!

Acácio Gouveia
aamgouveia55@gmail.com

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