Linha a linha, costura-se dignidade no Hospital de Santa Maria

27 de Julho 2025

Entre agulhas e linhas não-cirúrgicas, cinco costureiras do Hospital Santa Maria dão nova vida a milhares de peças de roupa que teriam como destino o lixo, num serviço invisível que também enfrenta falta de mãos para trabalhar.

O barulho das tradicionais máquinas de costura ecoa numa sala discreta do piso zero do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Ali, as costureiras enfrentam o desafio diário de reparar, adaptar e reaproveitar o amontoado de roupa que chega todos os dias da lavandaria.

Diariamente, cerca de seis toneladas de roupa dos hospitais Santa Maria e Pulido Valente, que integram a Unidade Local de Saúde Santa Maria (ULSSM), são enviadas para lavagem, a maioria lençóis, pijamas dos doentes e vestuário cirúrgico.

“Essa roupa sofre um processo de lavagem e de higienização na lavandaria, fora da unidade hospitalar”, onde é feita a triagem das peças danificadas, rasgadas ou sem botões, que são separadas com “a etiqueta a identificar costura”, contou à agência Lusa a coordenadora da Unidade de Gestão Hoteleira da ULS Santa Maria, Teresa Silva.

O desgaste natural e o processo de lavagem danificam muitas peças, mas há também situações de urgência em que é necessário rasgar a roupa para salvar uma vida.

Perante isto, restam duas opções: Destruir ou reaproveitar.

“É isso que estas senhoras fazem aqui. Tentamos dar o máximo de vida útil aos artigos”, o que também evita gastos ao hospital com a compra de roupa nova, realçou Teresa Silva.

Em média são recuperadas entre 3.000 e 3.500 peças por mês neste serviço, que já chegou a ter 12 costureiras. Hoje são apenas cinco, reflexo da dificuldade de recrutamento por ser uma profissão em risco de extinção.

Seriam necessárias mais profissionais para conseguir dar resposta a todas as solicitações, nomeadamente as fardas dos colaboradores, mas com cinco costureiras é impossível: “Então optámos por dar prioridade à roupa do doente”, disse Teresa Silva.

Para estas profissionais, “cada peça é um desafio” e “só sabem o que têm de fazer quando a abrem”.

Há 10 anos, Fernanda Santos, 61 anos, começou a trabalhar na sala de costura. Sabia coser à máquina porque aprendeu com mãe, também costureira, mas apenas fazia “coisas mais simples” como coser bainhas.

Com o tempo, foi aperfeiçoando a técnica. As peças nas suas mãos ganham agora uma vida nova, como contou à Lusa enquanto retirava da pilha de roupa umas calças de pijama, cortadas na ortopedia por causa de gessos, para transformar em calções.

Camisas rasgadas ganham novos decotes, lençóis com grandes estragos são reaproveitados como resguardos e, se ainda em bom estado, transformados em lençóis para os berços dos bebés.

“Se o lençol já for muito usado, muito gasto, não vale a pena estar a gastar a linha”, disse Fernanda, com um sorriso.

A costureira recordou com emoção o período da pandemia, quando esteve na linha da frente a confecionar cogulas (gorros de proteção facial e cervical), perneiras e cotoveleiras para os profissionais de saúde.

Numa altura em que o mundo enfrentava escassez de equipamento de proteção individual, Fernanda e as colegas trabalharam sem parar.

“Eram muitas horas de trabalho, mas fazia com gosto, porque sabia que era preciso”, disse emocionada. Fernanda pensava na filha, que é enfermeira e também podia vir a precisar daquele material.

Apesar das horas infindáveis a costurar, Fernanda sentiu que fez parte de História: “Estava na primeira linha porque ajudava quem estava na linha da frente. Se não fôssemos nós, eles também estariam um bocadinho mais aflitos”.

Maria de Lurdes Isidoro está apenas há sete meses no serviço de costura, apesar de já trabalhar no hospital há vários anos. Motivos de saúde levaram-na a mudar de função.

À Lusa contou que, até então, só sabia “pregar botões e fazer umas bainhas”. “No princípio ia ajudar as minhas colegas. Elas ajudavam-me, diziam o que tinha que fazer e adaptei-me”.

“Tudo o que sei aprendi aqui, e estou a gostar. Estou sempre ocupada, que é o que eu quero”, disse Maria de Lurdes, rematando com humor: “Agora é coser para a frente até haver roupa, que não acaba”.

Marisa Pereira, 57 anos, é a costureira mais antiga do hospital. Trabalha ali há 38 anos e já perdeu a conta às peças de roupa que reciclou.

O facto de ser surda não é obstáculo para as suas colegas. “Para mim não é desafio nenhum, eu entendo bem. Às vezes, ela quase que fala”, salientou Fernanda, sorrindo para Marisa.

Segundo Fernanda, Marisa é reconhecida pelo seu trabalho minucioso e eficaz: “Seja difícil, seja fácil, ela consegue”.

lusa/HN

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