Mário Jorge Neves, médico

A classe médica e a encruzilhada da sua dignidade

09/18/2025

Todos os dados factuais mostram claramente que em toda a Europa, a classe médica portuguesa foi a única que assumiu o projeto nuclear de estabelecer uma estreita ligação entre o seu desenvolvimento profissional e de carreira científica com a criação de um serviço público de saúde ao serviço das necessidades dos cidadãos.

No “Relatório sobre a Carreira Médica” divulgado em 1961, existem múltiplas análises de uma constante atualidade política e social.

A título de exemplo, refiro as seguintes:

-“A medicina, como outros ramos das ciências humanas, tem de adaptar-se ao ritmo do mundo moderno, porque constitui um dos seus fatores de progresso.

A adaptação pode obrigar a introduzir modificações no exercício profissional e exigir até o sacrifício de hábitos, costumes e prerrogativas, mas não exige a abdicação das normas basilares da ética médica”.

E no caso de a exigir, o dever do médico é opor-se-lhe, se por outro meio não as puder

fazer respeitar”.

– “As carreiras não se compreendem desarticuladas do sistema assistencial, tanto mais

que todo ele tem por ponto de apoio a clínica”.

– “No decurso dos nossos trabalhos tivemos sempre esta ideia em vista: aproveitar o que existe (onde há muito de bom e útil, mas mal aproveitado), introduzir as alterações que o bom senso e a experiência preceituam, orientar a ação para pontos concretos, definir um programa ordenado que seja exequível com os recursos nacionais.

Não destruir nada, antes de ter a certeza de que pode substituir-se com vantagens “.

– “Tudo deverá convergir para a realização desta finalidade suprema: o Serviço de Saúde deve garantir a qualquer indivíduo, no momento necessário, os cuidados médicos de que precisa, isto é, todos os portugueses, qualquer que seja o seu nível económico ou social, têm o mesmo direito ao mesmo nível de tratamento, à fruição das mais modernas e eficientes técnicas, aos mais complexos e dispendiosos métodos de diagnóstico e terapêutica “.

– “As carreiras constituem uma estrutura fundamental do serviço de saúde: sem elas não haverá assistência de boa qualidade; só com elas a situação presente não melhorará”.

Como se pode verificar, essa finalidade suprema era já a definição concreta de um Serviço Nacional de Saúde (SNS) que acabou por influenciar mais tarde o conteúdo do artº 64º da nossa Constituição.

Estas movimentações médicas, que culminaram no referido relatório, foram desenvolvidas em pleno regime ditatorial onde não existiam as mais elementares liberdades de reunião e associação.

A partir da única organização médica permitida pela ditadura, os médicos souberam conjugar esforços no rigoroso respeito pelas diferenças de opinião e construir consensos com um enorme poder mobilizador em torno das suas inúmeras propostas reivindicativas.

Esta situação de contestação, de experiência democrática e de aprendizagem cívica determinou a criação de uma forte consciência de classe profissional e de um sólido espírito de corpo profissional que marcaram profundamente todo o comportamento posterior dos médicos.

Com a instauração da democracia no período pós 25 de Abril de 74, verificou-se, inevitavelmente, uma explosão nas exigências de justiça social por parte dos nossos cidadãos.

Os médicos portugueses continuaram a manter um rumo esclarecido de intervenção reivindicativa, sempre com a preocupação de construir reivindicações muito bem estruturadas e fundamentadas.

Simultaneamente, continuaram a tomar iniciativas de forte impacto social e humanista como foi a implementação do serviço médico à periferia, levando a assistência médica aos locais mais recônditos do nosso país.

Como é natural, os anos posteriores a 1974, o ambiente de grande envolvimento político da generalidade dos nossos cidadãos e a militância política e social que atravessava toda a nossa sociedade, tiveram uma influência decisiva na formação da consciência de classe profissional e nas preocupações cívicas e humanistas dos novos médicos que se iam formando.

O percurso profissional foi encarado com grande preocupação numa perspetiva alicerçada numa carreira médica que assegurasse a contínua progressão técnico-científica e salarial.

A Carreira Médica tornou-se o instrumento central da garantia da qualidade do exercício da profissão médica.

Naturalmente, que os níveis de mobilização dos médicos e da sua participação nas assembleias de discussão dos seus problemas socioprofissionais permitiam aos dirigentes das associações médicas dispor de maior capacidade reivindicativa e negocial.

A maior parte dos governos tiveram uma manifesta hostilidade contra o SNS e contra a Carreira Médica, tornando evidente que eles tinham bem a noção de que estas duas realidades estavam intimamente interligadas.

Por outro lado, a criação de numerus clausus muito restritivos no acesso às Faculdades de Medicina sem terem minimamente em conta qualquer avaliação sobre as necessidades previsionais de médicos para o nosso país, instaurou entre os estudantes uma cultura de grande individualismo e de uma permanente competição entre eles.

A Lei nº 27/2002 aprovada pela maioria absoluta do governo de Durão Barroso e com Luís Filipe Pereira como ministro da saúde, criou os chamados Hospitais SA que passaram os seus profissionais a contratos individuais de trabalho sem carreiras e sem progressão técnico-científica nem salarial.

No mesmo hospital passaram a existir médicos inseridos em carreira e outros não.

Esta situação de ampla fragmentação laboral acentuou a divisão entre os médicos e estabeleceu uma enorme dispersão de interesses sócio laborais.

Alguns anos depois, a reforma da Administração Pública empreendida em 2008 com o então ministro das finanças Teixeira dos Santos num governo presidido por José Sócrates, ao introduzir profundas alterações no sistema das reformas e a aplicação de fortes penalizações nos anos seguintes, provocou uma debandada dos médicos mais velhos e com maior diferenciação técnico-científica a nível da carreira médica, determinando uma rotura abrupta entre as várias gerações de médicos e decapitando a estrutura hierárquica da formação médica contínua.

Ora, outra situação decorrente desta rotura entre as várias gerações de médicos foi bloquear a transmissão aos médicos mais novos a experiência acumulada nas lutas reivindicativas, a cultura, a identidade própria da nossa classe, os seus princípios e os valores humanistas que sempre nortearam múltiplas gerações de médicos.

Nos últimos anos, temos assistido às preocupantes consequências de todas estas malfeitorias contra a nossa classe profissional que culminaram há cerca de um ano e meio, num governo presidido por António Costa e tendo como ministro da saúde Manuel Pizarro, com as profundas e iníquas alterações aos estatutos da Ordem dos Médicos em que o principal órgão dirigente é constituído maioritariamente por estranhos à nossa profissão.

Nesta situação humilhante, sem precedentes, que nem em 48 anos de regime ditatorial houve tamanho descaramento político, a direção da Ordem dos Médicos, globalmente considerada, não tomou a mínima iniciativa para se opor à colonização das suas instâncias dirigentes por indivíduos estranhos à classe e que, potencialmente, podem desempenhar o papel de comissários políticos na desintegração de todo o exercício da profissão médica.

Esta direção da Ordem dos Médicos, limitou-se a umas reuniões com esse governo, com o atual e com alguns grupos parlamentares, colocando-se numa posição de capitulação perante o Poder político e hipotecando todo o futuro da nossa nobre profissão.

Como se isto não bastasse, têm surgido setores de médicos a defenderem a alienação de algumas das suas competências por outros profissionais de saúde, bem como defendendo uma crescente dependência perante a chamada Inteligência Artificial (IA).

No caso da IA, esquecem-se ou não chegaram a aprender que o núcleo central da profissão médica é a insubstituível Relação Médico – Doente e a ética da nossa profissão que nunca podem depender, em grande parte, de máquinas.

Se não formos intransigentes nestas questões nucleares, passamos a ser um corpo profissional oco, sem alma.

É muito urgente que se constitua uma ampla movimentação médica que interrompa, de imediato, este caminho acelerado da nossa classe profissional para o cadafalso.

E esta movimentação tem de questionar todas as responsabilidades das várias estruturas médicas na sua revoltante incapacidade de convergirem na defesa da nossa classe e em se deixarem manietar, nalguns casos, por agendas partidárias que só têm servido para nos enfraquecer e nos tornar presas fáceis do poder político.

Não é preciso especular para termos uma noção da desgraça coletiva que nos espera, pois basta olhar para outros países onde os respetivos médicos são hoje uma classe profissional insignificante e alvo de permanentes medidas de degradação da sua condição socioprofissional e da sua honra e ética médicas.

Este é o momento decisivo para o futuro da nossa profissão.

Abdicamos da nossa alma médica e aceitamos passar a ser uns robôs comandados por interesses obscuros?

Não nos deixemos espezinhar!!!

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

SIM defende transição faseada para vínculos estáveis no SNS

O Sindicato Independente dos Médicos afasta a possibilidade de convocar uma greve sobre o regime dos tarefeiros, reconhecendo o seu papel no SNS. A estrutura sindical alerta, no entanto, para o precedente perigoso de negociar com estes prestadores sem enquadramento legal, defendendo antes medidas que tornem a carreira hospitalar mais atrativa face a uma despesa que ronda os 300 milhões de euros anuais

Tempestade Cláudia obriga a medidas de precaução na Madeira

A depressão Cláudia, estacionária a sudoeste das ilhas britânicas, vai afetar o arquipélago da Madeira com ventos fortes, aguaceiros e agitação marítima significativa. As autoridades regionais de Proteção Civil emitiram recomendações para minimizar riscos, incluindo a desobstrução de sistemas de drenagem e evitar zonas costeiras e arborizadas

Carina de Sousa Raposo: “Tratar a dor é investir em dignidade humana, produtividade e economia social”

No Dia Nacional de Luta contra a Dor, a Health News conversou em exclusivo com Carina de Sousa Raposo, do Comité Executivo da SIP PT. Com 37% da população adulta a viver com dor crónica, o balanço do seu reconhecimento em Portugal é ambíguo: fomos pioneiros, mas a resposta atual permanece fragmentada. A campanha “Juntos pela Mudança” exige um Plano Nacional com metas, financiamento e uma visão interministerial. O principal obstáculo? A invisibilidade institucional da dor. Tratá-la é investir em dignidade humana, produtividade e economia social

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights