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Em 1933, o incêndio do Reichstag foi o pretexto para que Hitler suspendesse liberdades e consolidasse a ditadura nazi. A história mostra-nos que basta um choque coletivo para justificar a perda de direitos. Hoje, o método é outro: não é preciso queimar parlamentos, basta incendiar as redes sociais. E o mais estranho é que isto já nos parece rotina, como se fosse mais um episódio do quotidiano que não causa surpresa exatamente como no programa Homem que Mordeu o Cão.
A célebre pintura de 1896 de Jean-Léon Gérôme, “A Verdade saindo do poço armada do seu chicote para castigar a humanidade”, ilustra uma parábola do século XIX sobre o encontro entre a verdade e a mentira: a verdade, crua e nua, emerge de um poço para confrontar a humanidade com os danos causados pelas mentiras e disfarces. Hoje, as plataformas digitais tornaram-se o novo palco do poder. Mentiras, teorias da conspiração e insultos circulam livremente, muitas vezes recompensados com visibilidade e dinheiro. Enquanto isso, autores, escritores, humoristas e críticos que dizem verdades incómodas são suspensos ou censurados. É uma inversão absurda: a mentira rende e espalha-se com facilidade, enquanto a verdade paga as consequências e é silenciada.
O algoritmo manda e, ao mesmo tempo, censura. As redes sociais vivem de cliques, de polémica e de choque; o que gera ruído é premiado, mesmo que não tenha valor. Quem mente bem conquista alcance e visibilidade, enquanto quem procura dizer a verdade muitas vezes é silenciado ou ignorado. Foi assim que, segundo analistas e politólogos, figuras como o Presidente Trump encontraram terreno fértil para chegar ao poder, e líderes como Putin moldam narrativas globais a seu favor.
Criou-se um mercado onde o disparate frequentemente vale mais do que o trabalho que realmente acrescenta valor. A mentira viral supera a verdade, e o número de seguidores tornou-se sinónimo de rendimento. Nem sempre o mérito ou o talento determinam o sucesso: muitas vezes é o algoritmo que recompensa os piores conteúdos e penaliza os melhores, mesmo quando estes últimos dizem a verdade.
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O exemplo recente de Jimmy Kimmel é paradigmático: o seu programa foi suspenso pela ABC não por insultar ou difamar, mas por expor com humor verdades incómodas sobre a exploração política de uma morte. Ironia das ironias: É o retrato de um mundo ao contrário, onde se pune quem incomoda e se promove quem mente com convicção e diz os maiores disparates nas redes sociais.
Um professor de História disse-me uma vez que “a História é contada pelos vencedores”. Talvez amanhã a verdade online seja também contada por quem controlar os algoritmos. É aqui que a analogia com Harry Potter ganha força: há nomes que não se podem dizer e verdades que não se podem expor. Surgem os novos “Dementors” que não sugam apenas alegria sugam a verdade, o debate público e a confiança coletiva.
E, no entanto, o mais estranho é que tudo isto deixou de nos espantar. O absurdo tornou-se rotina, e o que antes nos chocaria agora passa despercebido nos noticiários, quase como se estivéssemos a ouvir um episódio do Homem que Mordeu o Cão, só que agora essas histórias não são ficção: acontecem todos os dias à nossa volta.
Sobrevivemos a uma pandemia, mas não aprendemos nada enquanto humanidade. Cada notícia perturbadora parece mais um episódio surreal da realidade, e não há humor que o suavize: está em jogo o nosso futuro coletivo. Se não mudarmos de rumo, deixaremos às novas gerações um mundo onde a anormalidade será a norma. Que geração seremos nós, se permitirmos que isso aconteça?


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