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Na Idade Média, chegou a “julgar-se” o que já não podia responder: cadáveres e animais. Hoje, levar a julgamento uma pessoa com demência de Alzheimer moderada-a-grave, incapaz de compreender o processo e de se defender, é um anacronismo do mesmo género: cumpre-se o rito, falha a justiça.
1) A analogia que nos obriga a parar
Houve tempos em que comunidades tentavam restaurar a ordem punindo corpos sem palavra: processos a animais e até julgamentos póstumos (o mais célebre, o Cadáver Synod, em janeiro de 897 – Synodus Horrenda). Eram cerimónias que apaziguavam, mas não responsabilizavam ninguém.
Coloque agora, no banco dos réus, alguém com Alzheimer avançado: não recorda factos essenciais, não entende as consequências processuais, não consegue instruir o defensor. A aparência de julgamento mantém-se; o sujeito processual desapareceu.
2) O facto clínico que muda tudo
Hoje sabemos duas coisas cruciais:
- Não há cura para a demência.Os cuidados são de suporte e visam dignidade e qualidade de vida.
- Os fármacos modificadores de doença só mostram benefício nas fases iniciais e abrandam o declínio; não restauramcapacidades perdidas nem tornam apta a julgamento uma pessoa em fase moderada-a-grave.
Se a clínica não devolve capacidade, um processo penal “normal” passa a ser teatro, não Estado de Direito.
3) O que exige o Direito em Portugal
No nosso quadro constitucional, o processo criminal “assegura todas as garantias de defesa”. Sem compreensão e possibilidade de contraditório não há julgamento válido.
Como é que os tribunais operam este princípio?
- Perícia médico-legal e psiquiátricaquando há dúvida sobre doença mental relevante para o processo (CPP, art. 159.º).
- Presença do arguidoé regra; sem condições para participar conscientemente, a audiência não deve prosseguir como se nada fosse (CPP, art. 332.º e segs.).
- Jurisprudência recente: incapacidade judiciária impede sujeição a julgamento, devendo os autos ficar suspensos enquanto subsistir a incapacidade.
Quando a doença já existia ao tempo dos factos e retirava autodeterminação, falamos de inimputabilidade (CP, art. 20.º) e a resposta é medida de segurança orientada para tratamento e reinserção, não pena (execução nos termos do DL n.º 70/2019).
4) Se não se pode julgar, o que fazer?
Mudar de abordagem não é desistir da justiça; é praticá-la.
- Proteção civil e representação: Acionar o regime do maior acompanhado para garantir decisões informadas sobre saúde, património e vida diária.
- Via clínica e social: Plano de cuidados continuados e de apoio a cuidadores, assumindo que o objetivo é cuidar, não “fazer regressar” capacidades perdidas.
- Saúde mental e segurança: Quando exista perigo clínico real (e só por isso), usar os instrumentos de tratamento involuntário da Lei n.º 35/2023, sempre com fim terapêutico e com as garantias previstas na lei.
5) Mensagem-chave para o público
Julgar sem mente é punir um corpo.
O Estado de Direito mede-se não pela obstinação do rito, mas pela coragem de parar quando a dignidade e as garantias de defesa o exigem. A ciência confirma: não existe “tratamento para tornar apto” quem está em demência avançada. A justiça, então, deve proteger, tratar e representar — não simular um julgamento.
🔍 Investigar além do texto
- Demência: factos essenciais e ausência de cura— Ficha informativa da OMS (2025).
- Fármacos nas fases iniciais: abrandam declínio, não revertem incapacidade.
- Garantias de defesa— Constituição da República Portuguesa, art. 32.º.
- Perícia psiquiátrica e presença do arguido— CPP, arts. 159.º e 332.º-334.º (regra da presença).
- Inimputabilidade e execução das medidas de segurança— CP, art. 20.º; DL n.º 70/2019.
- Representação civil— Lei n.º 49/2018 (maior acompanhado).
- Antecedentes históricos da analogia — E. P. Evans, The Criminal Prosecution and Capital Punishment of Animals; Cadaver Synod(897).
Nota final — Consultoria que evita injustiças
Quando existem dúvidas clínicas ou processuais, a consultoria em psiquiatria forense pode ser decisiva: ajuda a detetar precocemente a incapacidade para ser julgado, a indicar a perícia adequada e a articular a via penal (inimputabilidade, suspensão do processo por incapacidade atual), a via civil (maior acompanhado) e a via clínica (Lei n.º 35/2023). Contribui ainda para planos de continuidade de cuidados e proteção social, reduzindo o risco de decisões formalmente corretas mas materialmente injustas.


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