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Num país que se orgulha do Serviço Nacional de Saúde, é doloroso constatar que a dignidade dos profissionais que salvam vidas continua a ser desvalorizada. Os Profissionais do SIEM enfrentam diariamente dificuldades, sem os meios, o apoio ou o reconhecimento que merecem.
Os recentes relatórios da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) e da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) sobre o funcionamento do INEM entre 2021 e 2024 são um retrato preocupante. A IGAS identificou falhas graves na formação e apontou para comportamentos individuais que comprometeram o socorro em casos críticos. Já a IGF revelou uma gestão marcada por ajustes diretos em vez de concursos públicos, frota automóvel sem renovação desde 2015, execução orçamental inferior a 10%, e falta de monitorização dos meios financiados pelo Estado.
Estes dados não são apenas números. São vidas em risco. São profissionais desconsiderados, que continuam a prestar socorro apesar da sobrecarga e da falta de recursos. São cidadãos que esperam por socorro e, por vezes, não o recebem em tempo útil.
A criação da Comissão Parlamentar de Inquérito ao INEM, aprovada em julho de 2025, e da Comissão Técnica Independente (CTI), presidida pela juíza conselheira jubilada Leonor Furtado, são passos necessários para a refundação do Instituto Nacional de Emergência Médica. Esta comissão, composta por especialistas de várias áreas, tem nove meses para apresentar uma proposta de reorganização do INEM, avaliando desde a sua atividade reguladora até à articulação com bombeiros, forças de segurança e Proteção Civil.
O impacto esperado da CTI vai muito além da reestruturação administrativa. Trata-se de uma oportunidade histórica para redefinir o papel do INEM no SIEM, segregar as competências regulatórias da função operacional, e garantir que os profissionais de emergência sejam finalmente reconhecidos pelo risco e penosidade do seu trabalho. A comissão poderá ainda propor mecanismos de valorização profissional, modelos de formação contínua, e estratégias de articulação comunitária que reforcem a resiliência do sistema e da sociedade.
Contudo, este processo enfrenta um obstáculo persistente: as guerras partidárias. A emergência médica não pode ser campo de batalha ideológica, nem moeda de troca política. A dignidade dos que salvam vidas exige consenso, visão de Estado e compromisso interpartidário.
Exemplos recentes mostram como o debate sobre o INEM tem sido contaminado por disputas políticas:
– A proposta da Iniciativa Liberal para a criação da CPI foi inicialmente vista como um ataque ao legado dos governos socialistas, enquanto o PSD considerou a iniciativa precipitada, mas acabou por apoiá-la para expor o “abandono socialista” e destacar o investimento feito pelo atual governo.
– A ministra da Saúde, Ana Paula Martins, foi chamada ao Parlamento para assumir responsabilidades, enquanto partidos da oposição acusaram o executivo de não incluir medidas para o INEM no plano de emergência da saúde aprovado em 2024.
– A própria CPI foi criticada por alguns deputados como instrumento de ataque político, em vez de mecanismo de apuramento técnico e institucional.
O impacto destas guerras partidárias é devastador: atrasam decisões, descredibilizam instituições, e desmotivam Profissionais do INEM que já operam em condições muito difíceis. Quando a saúde é instrumentalizada, quem sofre são os que salvam e os que esperam ser salvos. A refundação do INEM deve ser protegida da lógica eleitoral e guiada por critérios técnicos, éticos e humanos.
É precisamente nestes momentos que se exige aos decisores políticos e institucionais uma consciência moral elevada. A capacidade de decidir com base no interesse público, na proteção da vida e na justiça social deve estar acima de qualquer cálculo partidário. A emergência médica é um território onde a ética não pode ser negociável. Os poderes públicos têm o dever de agir com responsabilidade, transparência e coragem — porque cada decisão, cada atraso, cada omissão tem consequências reais na vida de pessoas concretas.
O próprio INEM reconhece, na sua missão institucional, que tem como objetivo garantir o funcionamento eficaz e o desenvolvimento sustentável do SIEM, assumindo-se como uma organização de referência na prestação de cuidados de emergência médica extra-hospitalar. Esta missão, ambiciosa e nobre, só pode ser cumprida se os profissionais forem tratados com a dignidade que merecem — com formação contínua, condições de trabalho seguras, apoio psicológico e valorização pública.
E há ainda um fator estrutural que continua ausente do debate público: o risco e a penosidade associados ao trabalho dos profissionais de emergência. Estes trabalhadores enfrentam situações de violência, exposição a agentes biológicos, acidentes rodoviários, desgaste físico e emocional extremo que comprometem a capacidade de decisão e aumentam o risco de erro.
A ausência de um estatuto que reconheça formalmente esta penosidade é uma falha grave do Estado. Não se trata de privilégio — trata-se de justiça. Reconhecer o risco é proteger quem protege.
A dignidade dos que salvam vidas não pode ser uma nota de rodapé em relatórios técnicos. Tem de ser um compromisso nacional. Porque quando falhamos com quem salva, falhamos com todos.


Excelente artigo de opinião.
Todos sabemos que as lutas políticas atrapalham o INEM (e não só) e quem mais sofre são os profissionais e quem deles precisa.
É urgente parar de usar a saúde como arma política e valorizar efetivamente quem salva vidas todos os dias, independentemente da sua classe. O SIEM é um exemplo de que se falharmos com qualquer um dos seus intervenientes, falhamos com quem deles precisa.