Dinamarca pede perdão por contraceção forçada na Gronelândia

25 de Setembro 2025

A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, pediu hoje perdão oficialmente às mulheres submetidas a contraceção forçada na Gronelândia. O ato, em Nuuk, inclui um fundo de reconciliação, mas o primeiro-ministro groenlandês distanciou-se das palavras, num contexto de tensões bilaterais e pressão geopolítica

A primeira-ministra da Dinamarca, Mette Frederiksen, dirigiu-se hoje directamente a dezenas de mulheres na Casa da Cultura de Nuuk, num discurso breve mas carregado de um peso histórico que a sala absorvia em silêncio. “Em nome da Dinamarca, peço perdão”, afirmou, perante as vítimas de uma campanha de contraceção forçada que durou mais de três décadas. Muitas das presentes, vestidas de negro, não conseguiram conter as lágrimas perante o reconhecimento oficial de uma dor décadas contida.

A iniciativa, orquestrada pelas autoridades dinamarquesas a partir do final dos anos 60, visava explicitamente reduzir a natalidade no território ártico. Um relatório histórico divulgado em setembro último veio confirmar a escala chocante da operação: pelo menos 4.070 mulheres e adolescentes groenlandesas, cerca de metade da população feminina em idade fértil na época, receberam um dispositivo intrauterino (DIU), frequentemente sem o seu conhecimento ou consentimento. As consequências físicas e psicológicas persistem, com casos de esterilização e traumas profundos.

Para Kirstine Berthelsen, hoje com 66 anos, a cerimónia representou um ponto de viragem pessoal. “Vim por razões egoístas: ver e ouvir os pedidos de desculpas por duas gravidezes extrauterinas, longas estadas no hospital, cirurgias e a remoção de uma trompa de Falópio”, confessou à AFP. Para ela, o momento significa a possibilidade de “seguir em frente com a vida, sem que o ódio, a raiva e a negatividade” a consumam por dentro.

Contudo, o ambiente não foi uniformemente reconciliatório. O primeiro-ministro da Gronelândia, Jens Frederik Nielsen, antecedeu Mette Frederiksen no palco com um discurso firmemente distanciado. “Este pedido de desculpas não significa que aceitamos o que aconteceu. Estamos aqui hoje, porque não aceitamos o que aconteceu”, sublinhou, deixando claro que as palavras da líder dinamarquesa são apenas um passo num caminho mais longo por percorrer.

Esse caminho parece agora incluir compensações materiais. Na segunda-feira, Frederiksen anunciou a criação de um fundo de reconciliação para indemnizar as vítimas deste e de outros casos de discriminação, como as adoções forçadas de crianças groenlandesas por famílias dinamarquesas. Uma medida que Mads Pramming, advogado de cerca de 150 queixosas, considera essencial. “É uma notícia muito boa, porque para as minhas clientes não basta um simples pedido de desculpas”, afirmou, considerando o timing da iniciativa política como “oportuno”.

Analistas sugerem que esta mudança de postura de Copenhaga não é alheia ao contexto geopolítico atual. A Gronelândia, rica em recursos naturais, tem atraído um interesse crescente por parte de potências como os Estados Unidos de Donald Trump. A deputada Aaja Chemnitz, que representa o território no parlamento dinamarquês, notou uma aceleração nos esforços de reconciliação. “Sou deputada há dez anos e nunca antes tinha visto tantos esforços”, comentou, atribuindo a mudança à “pressão externa”.

Mette Frederiksen quebrou assim uma tradição de reticência por parte dos executivos dinamarqueses em pedir desculpas por ações passadas na Gronelândia. A historiadora Astrid Andersen lembra que “no passado, os primeiros-ministros dinamarqueses sempre foram extremamente relutantes em reconhecer as injustiças”. O caso da contraceção forçada, conhecido localmente como “anticonceção”, só ganhou destaque público em 2022, após o testemunho de uma vítima e uma série de podcasts que forçaram o relançamento de uma investigação.

As implicações legais mais graves do caso estão ainda por determinar. Uma investigação em curso, cujos resultados são aguardados para a primavera de 2026, irá analisar se as ações da Dinamarca configuraram ou não um ato de “genocídio”. Enquanto isso, o pedido de desculpas em Nuuk fica como um marco, ainda que imperfeito, num processo de contabilidade histórica que está longe de estar concluído.

NR/HN/Lusa

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