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Vivemos uma época de transição profunda nos sistemas de saúde, marcada por uma aceleração tecnológica sem precedentes. A introdução da inteligência artificial (IA) nos contextos clínicos já não constitui uma hipótese futurista, mas sim uma realidade concreta que desafia os paradigmas tradicionais da prática e da formação em enfermagem. O tema procura problematizar esta transição, evidenciando os riscos e as oportunidades que emergem quando a tecnologia se aproxima do fundamento ético e epistemológico do cuidar.
A enfermagem, enquanto disciplina e profissão, constrói-se sobre a capacidade de interpretar sinais, saber comunicar, integrar saberes, tomar decisões sob incerteza e agir com base em princípios éticos. É neste processo que o raciocínio clínico e o raciocínio crítico se tornam competências estruturantes. O primeiro refere-se ao conjunto estruturado e dinâmico de operações cognitivas e metacognitivas que permitem ao enfermeiro interpretar dados do doente, integrar conhecimentos científicos e experienciais, formular hipóteses diagnósticas, tomar decisões fundamentadas e avaliar continuamente os resultados das suas intervenções. O segundo diz respeito à capacidade de pensar de forma reflexiva, lógica e eticamente fundamentada, questionando pressupostos, avaliando argumentos e exercendo o julgamento moral.
Estes dois domínios, o clínico e o crítico, são inseparáveis. E é precisamente neste ponto que a inteligência artificial levanta novas exigências. Ao introduzir sistemas de apoio à decisão clínica, algoritmos preditivos e ferramentas de triagem automatizada, a IA reconfigura o ecossistema de decisões em saúde. Por um lado, oferece vantagens inegáveis, como a rapidez na análise de grandes volumes de dados, o apoio à deteção precoce de riscos clínicos e maior eficiência na gestão de recursos. Por outro lado, levanta questões de elevada complexidade ética, técnica e epistemológica. Nomeadamente, o risco de delegação acrítica da decisão à máquina, a opacidade dos modelos algorítmicos, a possibilidade de reprodução de enviesamentos sistémicos e a erosão do espaço de julgamento clínico humano.
Na realidade, o que está verdadeiramente em causa é o modo como formamos os profissionais do futuro. Não basta ensinar os estudantes de enfermagem a utilizar ferramentas digitais. É necessário capacitá-los para interagir com sistemas inteligentes de forma crítica, ética e informada. A presença da IA nos cuidados não anula a responsabilidade profissional, antes a reconfigura. O enfermeiro continua a ser o garante da decisão segura, justa e centrada na pessoa, mesmo quando a tecnologia sugere caminhos alternativos.
Como preparar os estudantes para este novo contexto? A resposta passa pela integração de metodologias pedagógicas ativas que estimulem a autonomia do pensamento, a reflexão crítica e a competência ética. A simulação clínica de alta-fidelidade, por exemplo, permite desenvolver competências de raciocínio sob pressão, num ambiente que simula a complexidade real dos cuidados. A aprendizagem baseada em problemas favorece o desenvolvimento de um pensamento integrador, colaborativo e argumentativo. O debate de dilemas ético-clínicos, por sua vez, reforça a consciência moral e a capacidade de deliberar em situações de conflito de valores.
Para além disso, é imperativo promover a literacia digital e algorítmica dos estudantes. Compreender como funcionam os sistemas de inteligência artificial, quais os dados que os alimentam, que limitações e riscos comportam, tudo isso deve fazer parte do currículo da enfermagem. Sem esta base, corre-se o risco de formar profissionais que confiam cegamente nos outputs da máquina ou, inversamente, que rejeitam o seu uso por desconhecimento.
A formação em enfermagem do século XXI deve, por conseguinte, cultivar simultaneamente a competência técnica e o discernimento ético. Deve formar profissionais capazes de integrar a informação gerada por algoritmos, mas sem abdicar da responsabilidade moral que lhes é inerente. Porque, em última análise, não é a máquina que responde perante a pessoa cuidada. É o ser humano. E é essa a dignidade que deve ser preservada e promovida.
O futuro da enfermagem constrói-se hoje, nas salas de aula, nos estágios clínicos e nos espaços de reflexão pedagógica. Cabe-nos a todos, enquanto docentes, investigadores e profissionais, garantir que este futuro não seja apenas tecnológico, mas profundamente humano, crítico e comprometido com os valores do cuidado. Entre algoritmos e decisões clínicas, a diferença continuará a residir na qualidade do pensamento e na profundidade da consciência ética que formos capazes de cultivar. No cruzamento entre inteligência artificial e decisão clínica, o futuro da enfermagem dependerá da coragem de pensar criticamente.


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