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A Psiquiatria Forense, na sua vertente Prisional em Portugal vive numa zona cinzenta. Sem carreira própria, sem formação reconhecida e sem hospital especializado, continua a operar entre a medicina e o direito, entre o tribunal e a cela, entre o parecer e o plano de tratamento.
Mas há uma distinção que precisamos de começar a fazer. Não só por rigor técnico, mas por exigência ética e legal: A diferença entre psiquiatria forense pura e híbrida.
E desde a publicação do Decreto-Lei n.º 70/2019, essa distinção deixou de ser académica. Tornou-se uma necessidade prática e normativa.
Psiquiatria Forense Pura: O Perito
É aquela que mais facilmente associamos à justiça:
- Elaboração de perícias psiquiátricas (penais, cíveis, tutelares, laborais);
- Resposta a pedidos do tribunal, Ministério Público ou advogados;
- Foco no momento da decisão: responsabilidade, capacidade, risco.
O perito não é médico assistente, não diagnostica nem prescreve. Age com independência técnica e isenção. A sua função é avaliar, não tratar.
E a única incompatibilidade médica clara aqui é esta:
O perito nunca pode avaliar pericialmente o seu próprio doente – e o médico assistente não pode assumir a função de perito sobre o doente que acompanha.
Psiquiatria Forense Híbrida: O Clínico em Meio Forense
Menos visível, mas talvez mais exigente. A psiquiatria forense híbrida – onde se encontra a chamada psiquiatria prisional – é a que se pratica em contexto de privação de liberdade (unidades de psiquiatria forense – SNS, e clínicas de psiquiatria prisional – DGRSP), com doentes reais, riscos concretos e tempos longos.
Aqui, o psiquiatra:
- É médico assistente de pessoas com doença mental grave;
- Acompanha reclusos, inimputáveis e internados com medidas de segurança;
- Diagnostica, trata, gere o risco, faz a articulação judicial e promove a reinserção.
Está dentro do sistema. E por isso, assume um duplo compromisso ético:
- Para com o doente (tratamento, confidencialidade, dignidade);
- Para com a instituição (segurança, articulação judicial, cumprimento de medida).
O Decreto-Lei n.º 70/2019: O Ponto de Viragem
Publicado em 2019, estabelece o regime jurídico da execução das medidas de segurança de internamento, aplicadas a pessoas inimputáveis com anomalia psíquica.
E é aqui que a distinção entre puro e híbrido se torna incontornável.
O diploma impõe:
- A elaboração de planos individuais de tratamento e reabilitação;
- A existência de equipas clínicas forenses com funções assistenciais;
- A avaliação periódica de evolução clínica e risco;
- A articulação entre saúde, justiça e reinserção.
Ora, estas funções não podem ser assumidas por peritos. São funções clínicas, contínuas, com vínculo terapêutico real. Exigem presença, compromisso e responsabilidade médica no terreno.
A Questão Ética e os Direitos Humanos
É aqui que Portugal falha. O internamento forense, que deveria ser terapêutico e orientado para a reintegração social, muitas vezes transforma-se em mera custódia prolongada. A inexistência de hospitais psiquiátricos forenses de tutela interministerial (Justiça e Saúde) e a ausência de um corpo clínico com formação estruturada em psiquiatria prisional, deixam pessoas inimputáveis, condenadas e preventivas à mercê de soluções improvisadas, em unidades sem recursos adequados.
Esta falha não é apenas técnica. É ética e jurídica. Colide com princípios básicos da dignidade humana, com as garantias inscritas na Lei da Saúde Mental (Lei n.º 35/2023) e com normas internacionais como as Regras de Mandela (ONU)ou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CRPD).
Mas a raiz do problema vai mais fundo: Portugal não tem, até hoje, uma política de saúde mental forense. Não existe uma visão integrada que defina objetivos, recursos, competências, nem articulação entre os diferentes ministérios e serviços. O resultado é um vazio estrutural: a lei proclama direitos, mas o sistema não os concretiza.
Sem uma política nacional de saúde mental forense:
- as medidas de segurança perdem sentido terapêutico e tornam-se meramente detentivas;
- os profissionais trabalham sem enquadramento institucional, expostos a dilemas éticos permanentes;
- e os doentes, os mais vulneráveis do sistema penal, veem os seus direitos humanos sistematicamente comprometidos.
E o que não se resolve dentro do país, acaba por ser decidido fora dele: Portugal já se expõe a sentenças condenatórias do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que obrigam o Estado a indemnizar os (poucos) que reclamam estas violações. Um custo moral, jurídico e financeiro que se poderia evitar com uma política pública clara, justa e conforme ao direito internacional.


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