Uganda: resistência a antimicrobianos agrava crise sanitária

28 de Setembro 2025

Na árida região de Karamoja, nordeste do Uganda, quase metade dos alimentos e água consumidos por crianças estão contaminados com Salmonella resistente a antibióticos. O estudo recente revela que mais de 90% das estirpes identificadas não respondem à azitromicina, limitando drasticamente as opções de tratamento.

A pobreza crónica que define a sub-região de Karamoja, no Uganda, apresenta agora uma nova faceta ameaçadora. Uma investigação recente expõe que aproximadamente metade dos géneros alimentícios e da água consumidos por crianças menores de cinco anos naquela área isolada se encontra contaminada com Salmonella farmacorresistente. Este cenário sombrio reduz ainda mais as já débeis probabilidades de sobrevivência infantil numa zona historicamente fustigada pela má nutrição e escassez hídrica.

O estudo, publicado na BioMed Central após revisão por pares, detectou a presença da bactéria tanto em amostras de comida crua como cozinhada, paralelamente a reservas de água domésticas e comunitárias. Das estirpes de Salmonella enterica identificadas, mais de noventa por cento demonstraram resistência à azitromicina, antibiótico de uso comum, enquanto que acima de um terço se mostrou imune a múltiplos fármacos.

Ronald Mpagi, autor principal do estudo e investigador em microbiologia na Universidade de Gulu, confessou que a motivação para esta investigação surgiu da estagnação observada após anos de programas governamentais e de ajuda internacional para combater a má nutrição persistente. Karamoja, uma zona semiárida, sofre de uma carência de água crónica, privando as comunidades de fontes seguras de consumo. A maioria das famílias, compostas por pastores nómadas, habita em manyattas – unidades domésticas fechadas onde o gado vive próximo das pessoas.

A situação sanitária é igualmente precária. Mais de sessenta por cento da população pratica a defecação ao ar livre, sobrecarregando sistemas de saneamento já de si limitados. “As latrinas disponíveis não conseguem acomodar o crescimento populacional em Karamoja”, explicou Mpagi. “Muitas delas são construídas em locais específicos, mas, dado o nomadismo das famílias, estas deslocam-se com os seus animais e não podem regressar para utilizar essas instalações antes de prosseguirem viagem.”

Estas condições criam um ciclo vicioso onde dejectos humanos, gado, alimentos e água se cruzam, permitindo que a contaminação chegue às refeições das crianças. A diarreia, consequência habitual, figura entre as cinco principais causas de mortalidade infantil na região. Episódios repetidos de doença diarreica impedem a absorção de nutrientes, deixando as crianças debilitadas e vulneráveis.

Bwambale Benard, nutricionista de saúde pública ugandês, alerta que quando os antibióticos de primeira linha falham, as crianças permanecem doentes por mais tempo, a má nutrição agrava-se e a mortalidade aumenta. Contudo, Benard realça que o perigo não se circunscreve às crianças. As infecções também afectam grávidas, idosos e agregados familiares inteiros, tornando famílias improdutivas e consumindo parcos rendimentos. “Teremos assim uma comunidade doente, debilitada, incapaz de ser produtiva e, por conseguinte, sem condições para contribuir para o PIB do país ou sequer para sustentar as suas próprias famílias”, afirmou.

Um projecto financiado pela USAID em 2017 projectou que a má nutrição custará ao Uganda aproximadamente 19 biliões de Xelins (cerca de 7,7 mil milhões de Dólares americanos) em produtividade perdida até 2025. Benard receia que, sem controlo, a Salmonella resistente possa também minar os objectivos de desenvolvimento do país. Sublinhou a necessidade de práticas mais seguras de manipulação de alimentos para prevenir recontaminações, acrescentando que combater a defecação ao ar livre exige abordar barreiras tanto culturais como práticas.

Por seu turno, Andrew Kambugu, director executivo do Instituto de Doenças Infecciosas da Universidade de Makerere, referiu que o Uganda desenvolveu sistemas para detectar a resistência antimicrobiana antes que esta atinja proporções alarmantes. Em parceria com o Ministério da Saúde do Uganda, a sua equipa gere uma rede de vigilância apoiada pelo Fundo Fleming, financiado pelo Reino Unido. Este sistema, operacional em sete hospitais de referência, monitoriza padrões de resistência e emite alertas precoces. “Com o sistema de vigilância, se detectarmos aglomerados de pacientes com diarreia por Salmonella, seremos capazes de identificar o problema, pois estamos a recolher os dados – funcionará como um sistema de alerta precoce”, explicou Kambugu.

Sobre os achados em Karamoja, Kambugu considerou-os impressionantes. “Nas regiões que temos vigiado, não encontramos uma taxa tão elevada. Penso que é invulgar”, disse, atribuindo a situação às práticas culturais e aos problemas de acesso à água na sub-região.

Daniel Kyabayinze, director de saúde pública do Ministério da Saúde do Uganda, informou que o governo está a reforçar a educação sobre higiene em Karamoja e a formar agricultores em manuseamento pós-colheita mais seguro. Estas medidas enquadram-se no Plano de Acção Nacional sobre Resistência a Antimicrobianos, já no seu quinto ano e alinhado com o Plano de Acção Global da OMS. Kyabayinze vê no estudo uma oportunidade crucial para melhorar os resultados. Enquanto medicamentos de uso vasto como a azitromicina e a ciprofloxacina mostraram alta resistência, fármacos mais antigos e económicos, como o co-trimoxazole, mantiveram uma resistência muito baixa. “Podemos, portanto, distribuir os medicamentos mais baratos e eficazes, especialmente em regiões como Karamoja”, concluiu.

Aceda ao documento completo em: https://www.scidev.net/global/news/drug-resistant-salmonella-rife-in-ugandas-poorest-region/

NR/HN/AlphaGalileo

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