Cabo-verdianos desesperam por assistência médica e procuram solução em Dacar

5 de Outubro 2025

Juceila da Costa, 23 anos, espera desde 2023 por uma tomografia computadorizada (TAC) no Hospital Universitário Agostinho Neto (HUAN), o maior do país, na capital, Praia, para descobrir a causa de dores de cabeça que a atormentam.

“Marquei uma TAC, vai fazer quase dois anos, sem resposta”, conta à Lusa, enquanto se queixa do desconforto causado pelas tonturas com que tem de viver diariamente.

Juceila sofre ainda de outro problema de saúde, um quisto num ovário detetado durante uma consulta numa clínica privada, onde não conseguia suportar mais custos e por isso tentou obter ajuda através do sistema de saúde nacional.

“Fui ao hospital [na cidade da Praia] marcar uma consulta e já passaram mais de seis meses, sem notícias. Agora procuro ajuda para ir a uma consulta no Senegal para resolver de vez a situação,” explica.

Muitos cabo-verdianos olham para o vizinho Senegal, com a capital a 700 quilómetros (hora e meia de voo) e sem necessidade de visto na fronteira, como a salvação para a falta de resposta do sistema de saúde do arquipélago.

Janito Ramos, 32 anos, é um dos representantes do projeto “Zé Luís Solidário”, criado há cinco anos para apoiar pessoas que precisam de ajuda com consultas médicas.

O próprio aguarda há sete meses por uma cirurgia a uma hérnia.

“Fiz todas as consultas, entreguei a documentação, mas disseram-me que a sala de operações estava em construção. Já não tenho esperança,” disse à Lusa, destacando que muitos recorrem ao projeto por perderem a confiança no sistema de saúde.

A iniciativa publica no Facebook os casos que acompanha, e recebe apoios dos Estados Unidos e Portugal.

Trata-se de um projeto com representantes em todas as ilhas e que já apoiou 72 pessoas em cinco anos para tratamentos em Dacar.

A maioria dos casos são oncológicos, mas também há problemas de pele e “o projeto cobre todos os custos, incluindo acompanhamento. Em Dacar há melhores condições,” explica.

Os relatos de demora e falta de resposta do sistema de saúde cabo-verdiano incluem diferentes tipos de especialidades.

Liliana Moreno, 27 anos, marcou uma consulta oftalmológica no HUAN, há sete anos, e ainda está à espera.

“Fui também a um centro de saúde por causa de dores de cabeça e deram-me um papel para marcar consulta no hospital. Já passaram três meses e ainda estou à espera. Não recorro a clínicas privadas por falta de recursos”, disse.

Nos últimos tempos, as dores têm impossibilitado Liliana de fazer a sua vida normal, chegando a passar dias acamada.

“A minha avó esperou tanto por uma consulta que só ligaram depois de ela ter morrido”, acrescenta.

Além disso, conta que o marido também enfrentou atrasos no atendimento.

“Fomos ao hospital de ambulância, esperámos até de madrugada, deram apenas remédio para a dor, sem nenhuma análise e voltámos para casa. As dores continuaram e ele acha que não vale a pena insistir nas consultas”, relata.

Marlise Gonçalves, 33 anos, aguarda há quase um ano por uma consulta devido a uma lesão ocular.

“Não consigo andar ao sol. Acho que vou ter de recorrer a uma clínica privada”, refere, apontando ainda para atrasos de cinco meses nas análises à filha por causa de outro problema de saúde.

O sociólogo Henrique Varela alerta que “há carências em especialidades e medicamentos, o que provoca atrasos”.

“Muitas famílias recorrem a empréstimos para custear consultas e a procura pelo Senegal aumenta devido à rapidez e eficiência do atendimento”, disse à Lusa.

O bastonário da Ordem dos Enfermeiros, Aniceto Santos, aponta a falta de recursos humanos como um problema central: “Há 379 enfermeiros aprovados em concurso à espera de colocação. Com todos integrados, a lista de espera poderia melhorar significativamente”.

Também há médicos a aguardar colocação, e, entretanto, recorrer ao Senegal é legal e facilita o acesso rápido a consultas, admite.

Aniceto Santos sugere que o Governo explore protocolos com o Senegal para diminuir a lista de espera nas consultas e tornar o processo mais seguro e económico, além de promover políticas que fixem médicos em Cabo Verde e incentivem especialidades.

A Lusa tentou obter esclarecimentos por parte do Ministério da Saúde e do HUAN, mas não obteve respostas.

Numa publicação no Facebook, no último mês, o Presidente da República, José Maria Neves, expressou preocupação com a “clara degradação” de alguns serviços públicos, incluindo a saúde: “Temos de responder às interpelações dos cidadãos e corrigir falhas onde forem identificadas”.

O ministro da Saúde anunciou, em julho, que, a partir do próximo ano, Cabo Verde formará médicos em seis especialidades para reduzir a dependência de profissionais estrangeiros e de missões internacionais.

 A estratégia 2024-2028 para cooperação entre Cabo Verde e a Organização Mundial da Saúde (OMS) identifica como uma das preocupações centrais a necessidade de “melhorar determinadas dimensões do sistema de saúde, incidindo na força de trabalho e na qualidade dos cuidados”.

“Com um rácio de 7,7 médicos por cada 10.000 habitantes, o número ultrapassa a média africana (2,9/10.000), mas continua abaixo da densidade recomendada pela OMS (10/10.000)”, lê-se no documento.

lusa/HN

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