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O cenário que se desenha nos corredores do Serviço Nacional de Saúde português é, nas palavras de quem lá trabalha diariamente, uma fotografia a preto e branco de um sistema outrora colorido. Foi esse retrato, carregado de preocupação mas também de uma teimosia combativa, que a delegação da Federação Nacional dos Médicos transportou até João Pessoa, no Brasil, para a 6.ª Conferência Internacional de Sindicatos Médicos. O evento, que decorreu entre 2 e 4 de outubro, juntou cerca de duzentos participantes de vários cantos do mundo, desde a Europa às Américas, passando por África, todos com um fio condutor comum: a perceção de que a profissão médica enfrenta ameaças globais que exigem respostas igualmente globais.
Joana Bordalo e Sá, presidente da FNAM, não deixou margem para ambiguidades na conferência de abertura. “O Médico no Século XXI: Desafios Globais e o Papel dos Sindicatos” serviu de palco para uma intervenção frontal, onde acusou opções políticas concretas de estarem a estrangular os serviços públicos de saúde. O enfraquecimento destas estruturas, afirmou, não é um acidente ou uma consequência inevitável, mas sim uma decisão que põe em causa o acesso universal aos cuidados e a própria qualidade da medicina. A sua voz, firme, defendeu uma coligação sindical transnacional, capaz de travar o que descreveu como uma desvalorização progressiva do trabalho médico. “Sem uma frente comum, sem essa solidariedade internacional que hoje aqui se constrói, será difícil inverter políticas que ignoram a valorização dos médicos como pilar de um serviço público digno”, terá afirmado, segundo os resumos da sessão.

A delegação da FNAM: da esquerda para a direita, Inês Videira, João Proença, Rosa Ribeiro, Joana Bordalo e Sá, Noel Carrilho, Waldir Araújo Cardoso (Diretor de Relações Internacionais da FMB) e André Gomes
O caso português foi depois dissecado por André Gomes, do Sindicato dos Médicos da Zona Sul. Na sua exposição, intitulada “State of Healthcare and the Portuguese National Health Service (SNS): Political Instability, Workforce Crisis, and FNAM’s Advocacy”, apontou o dedo à falta de vontade política do Governo de Luís Montenegro para travar a hemorragia de profissionais e investir de forma consistente nos quadros do SNS. Mas foram os seus exemplos concretos que melhor ilustraram a crise. Deteve-se, com particular amargura, no que está a acontecer com os serviços de obstetrícia de proximidade. Reorganizações e encerramentos, disse, não são meros ajustes logísticos. Têm um rosto: o de partos que já não acontecem em salas equipadas, mas sim no interior de ambulâncias a alta velocidade, numa corrida contra o tempo que reflete o desinvestimento nos cuidados de base. São imagens que, admitiu, perturbam qualquer profissional e questionam o rumo das políticas de saúde.
Num registo mais voltado para as políticas continentais, Noel Carrinho, do Sindicato dos Médicos da Zona Centro e membro do secretariado da Federação Europeia de Médicos Assalariados, apresentou o projeto “Shaping the Future of Doctors’ Health: Better Working Conditions for a Healthier Profession”. A iniciativa europeia, ainda em desenvolvimento, tenta responder a um paradoxo: como podem os médicos, dedicados a cuidar da saúde dos outros, trabalhar em condições que tantas vezes comprometem o seu próprio bem-estar físico e mental. A plateia, maioritariamente composta por sindicalistas que lidam no terreno com estes problemas, seguiu com interesse uma abordagem que tenta ligar as condições laborais diretamente à qualidade dos cuidados prestados.
A mesa-redonda “Remuneração, Condições de Trabalho e Reconhecimento Profissional na Perspetiva da Mulher Médica” trouxe para a discussão uma camada adicional de complexidade. Rosa Ribeiro, vice-presidente do Sindicato dos Médicos do Norte, não se ficou por generalidades. Descreveu, com detalhes, as assimetrias que continuam a marcar a carreira das médicas em Portugal. Disparidades salariais, obstáculos subtis mas reais na progressão profissional e a eterna dificuldade em conciliar a vida familiar com exigências laborais muitas vezes incompreensivas foram alguns dos pontos que destacou. O seu alerta foi claro: não basta abrir as portas das faculdades de medicina às mulheres; é forçoso criar condições para que possam construir carreiras plenas e equitativas, sem serem penalizadas por questões de género. A sua intervenção, partilhada com Inês Videira, também do Sindicato do Norte, baseou-se no relatório da FNAM que compila dados e testemunhos sobre a degradação do SNS.
Esse documento, entregue durante a conferência, funciona como um dossiê acusatório. Nele, a Federação Nacional dos Médicos compilou números, mas também histórias reais, que pintam um panorama de desgaste: serviços públicos a definhar, carências crónicas de profissionais e o impacto palpável de anos de subfinanciamento. Mais do que um simples relatório, é descrito pelos seus autores como um instrumento de luta, uma forma de travar a narrativa de que tudo não passa de uma inevitabilidade.
Os três dias de trabalhos em solo brasileiro, organizados pela Federação Médica Brasileira e pelo Sindicato dos Médicos do Estado da Paraíba, permitiram confirmar que muitos dos desafios são partilhados para além das fronteiras nacionais. A defesa intransigente de um serviço público de saúde robusto emergiu não como uma mera bandeira ideológica, mas como uma condição essencial para o acesso equitativo da população aos cuidados e, não menos importante, para a própria dignidade do exercício da Medicina. O que ficou no ar, quando as luzes da conferência se apagaram, foi a sensação de que o caminho a seguir terá de passar, inevitavelmente, por uma cooperação sindical internacional mais forte, mais propositiva e, acima de tudo, mais capaz de fazer frente a políticas que, em muitos cantos do globo, parecem querer transformar a saúde num privilégio em vez de um direito.
NR/HN/Lusa



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