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Num contexto em que os cancros digestivos representam uma percentagem significativa dos novos casos oncológicos em Portugal, o Healthnews conversou com o gastrenterologista Ricardo Veloso. Especialista e coordenador médico na Unilabs Minho e na CUF Porto, Veloso analisa os fatores por trás dos elevados números, sublinha a importância crucial dos rastreios populacionais e deixa um alerta sobre a adoção de estilos de vida mais saudáveis como forma de prevenção
- O cancro colorretal surge como o mais frequente em Portugal, com 10.575 novos casos em 2022. Que fatores específicos contribuem para esta elevada incidência no nosso país?
O elevado número de casos de cancro colorretal em Portugal tem várias explicações que, inevitavelmente, se sobrepõem:
- O envelhecimento populacional (o risco aumenta com a idade)
- A exposição a fatores de risco modificáveis (dieta rica em carne processada e pobre em fibra, excesso de álcool, tabagismo, excesso de peso e sedentarismo) e outros fatores potencialmente reversíveis ao nível da prevenção primária.
Existem igualmente evidentes lacunas na cobertura e adesão ao rastreio organizado de base populacional que fazem com que o número de casos de cancro colorretal nos últimos anos seja persistentemente acima dos 10.000 por ano o que é demasiado elevado para um cancro rastreável e Prevenível!
- Os dados mostram que o cancro do estômago é o quinto mais comum em Portugal, com 3.668 novos casos. Como explica a maior prevalência desta doença no Norte do país?
A distribuição geográfica do cancro gástrico em Portugal reflete fatores biológicos e sociais.
Como explicação mais provável temos a elevada prevalência de infeção por Helicobacter pylori — o principal fator de risco para adenocarcinoma gástrico — no Norte do país.
Em Portugal a prevalência de H. pylori tem sido historicamente alta e vários estudos mostram prevalência particularmente elevada em regiões do Norte; a combinação de maior prevalência da infeção, padrões de dieta (consumo histórico de alimentos salgados/fumados), e desigualdades socioeconómicas todas concorrem para explicar a excessiva prevalência deste tipo de tumor no Norte do país.
- Observamos que o risco cumulativo de desenvolver cancro digestivo antes dos 75 anos é de 28,6%. Que medidas preventivas recomenda aos portugueses para reduzir este risco?
As medidas a adotar terão de incidir não apenas na prevenção secundária, mas também ao nível da prevenção primária:
- Alterações do estilo de vida: medida fundamental para prevenir o aparecimento do cancro digestivo. É fundamental manter um peso saudável, praticar atividade física regular, evitar o consumo de álcool e tabaco, aumentar consumo de alimentos ricos em fibra (cereais integrais, frutas, legumes), limitar carnes vermelhas e sobretudo carnes processadas, reduzir o consumo de bebidas açucaradas e alimentos ultraprocessados. Estas medidas reduzem o risco de vários cancros digestivos.
- Rastreios organizados e vacinação:
- Cancro colorretal: é fundamental aumentar a participação da população no rastreio de base populacional. O rastreio do cancro colorretal ainda não tem implementação nacional e mesmo onde está implementado, a taxa de adesão é cerca de 30% o que é manifestamente insuficiente. É igualmente necessário rever a idade de início do rastreio do cancro colorretal e acompanhar as recomendações atuais de muitas sociedades internacionais que sugerem início do rastreio do cancro colorretal em população de risco médio (sem história familiar de cancro colorretal) aos 45 anos e não aos 50 anos como atualmente está estabelecido em Portugal.
- Cancro do fígado: a vacinação universal contra hepatite B (HBV) é uma medida eficaz para reduzir a incidência de carcinoma hepatocelular. É igualmente importante o rastreio deste tipo de cancro em doentes com cirrose hepática, sendo muito importante a implementação local.
- Cancro gástrico: identificação e tratamento de H. pylori em populações de risco poderá reduzir futuros casos; há ensaios e meta-análises a mostrar redução do risco de cancro gástrico após erradicação. Em Portugal existem estudos que comprovam que adicionar a endoscopia digestiva alta à colonoscopia de rastreio é um método custo-eficaz para a prevenção do cancro gástrico que tem, igualmente, possibilidade de prevenção através da vigilância ou remoção de lesões pré-malignas por via endoscópica.
- Como interpreta o facto de Portugal apresentar 2.158 novos casos de cancro do pâncreas em 2022, sendo este um dos cancros digestivos com maior taxa de mortalidade?
O cancro do pâncreas (maioritariamente o adenocarcinoma ductal) é um cancro de difícil e muitas vezes tardio diagnóstico:
- É uma neoplasia frequentemente assintomática em estádios precoces e os sintomas iniciais são frustres e inespecíficos;
- É um tumor biologicamente agressivo com metastização precoce;
- À data não existe um método possível/aceitável para rastreio de base populacional;
- O aumento/estabilidade da incidência em várias regiões está também associado ao envelhecimento e a fatores de risco prevalentes (tabagismo, obesidade, diabetes de novo, pancreatite crónica, predisposição genética).
O que podemos fazer na prática:
- Atenção clínica a sinais de alerta: perda de peso inexplicada, icterícia de início recente, dor abdominal persistente com irradiação e diabetes de início recente em indivíduos sem fatores de risco — estes sinais exigem investigação rápida (TAC/RM).
- Identificação e rastreio de grupos de muito alto risco (história familiar, mutações BRCA/PAK etc.) em centros especializados, com vigilância por RM e eco endoscópico quando indicado é igualmente uma forma de poder conseguir um diagnóstico precoce desta neoplasia.
- Tendo em conta que o cancro do fígado representa 1.740 novos casos anuais em Portugal, qual a importância do rastreio precoce e que sinais não devemos ignorar?
O rastreio (vigilância) do hepatocarcinoma melhora a deteção em fases precoces e aumenta a probabilidade de tratamentos potencialmente curativos (ressecção, ablação, transplante, etc.). As sociedades científicas recomendam atualmente vigilância cada 6 meses com ecografia abdominal em pessoas com risco elevado (cirrose ou certas situações de hepatite crónica).
Sinais que não devemos ignorar (quando persistentes/novos): perda de peso inexplicada, perda de apetite, sensação de plenitude, dor no hipocóndrio direito, aumento abdominal por ascite, icterícia (amarelecimento), fadiga súbita e massa palpável no fígado. Se o doente tiver doença hepática crónica, qualquer agravamento (ascite, encefalopatia, agravamento da função hepática) deve levar a avaliação para exclusão de aparecimento de hepatocarcinoma.
- Na sua experiência clínica e enquanto membro da Liga Portuguesa Contra o Cancro, que evolução tem notado no acesso aos rastreios do cancro digestivo em Portugal?
Nos últimos anos assistimos a avanços importantes, mas incompletos tanto a nível da prevenção primária como da prevenção secundária.
O rastreio do cancro colorretal passou a ser um programa nacional baseado em FIT/PSOF e colonoscopia de confirmação e tem cobertura geográfica progressiva; contudo, a taxa de adesão e a cobertura efetiva permanecem inferiores ao ideal e variam regionalmente.
Relatórios e análises (OCDE, DGS, meios nacionais) mostram progressos na implementação, mas também quedas de adesão em alguns anos e desigualdades territoriais — o que reduz o impacto final do programa.
A evolução tem sido, contudo, globalmente positiva, mas é necessária vontade política para:
- Liberalizar o acesso nacional ao rastreio de base populacional do cancro colorretal e abandonar o rastreio oportunístico;
- Efetuar ações de sensibilização junto da população civil e comunidade médica sobre a importância do rastreio dos cancros digestivos;
- Diminuir a idade do rastreio do cancro colorretal para os 45 anos;
- Oferecer a possibilidade de rastreio combinado do cancro gástrico e colorretal através da realização de endoscopia digestiva alta aquando da colonoscopia de rastreio;
- Comparticipar a sedação para as endoscopias digestivas altas de forma a não colocar entraves à realização destes exames.
- Considerando que os cancros digestivos representam uma percentagem significativa dos novos casos oncológicos em Portugal, que mensagem gostaria de deixar à população neste Dia Mundial do Cancro Digestivo?
O cancro digestivo pode ser prevenido ou, pelo menos, detetado em estádios precoces quando as opções terapêuticas são vastas!
Participe no rastreio do cólon quando for chamado!
Mantenha um estilo de vida saudável — não fume, não beba álcool, mantenha um peso saudável e coma mais fibra e menos carne processada.
A prevenção coletiva através de políticas corretas de saúde pública e a ação individual na procura de melhor prevenção oncológica salvam vidas!
Entrevista MMM



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