Diogo Feio: harmonização europeia e liberdade pessoal — o equilíbrio possível

10/08/2025
Em entrevista exclusiva ao HealthNews, Diogo Feio, professor universitário, advogado e ex-deputado ao Parlamento Europeu, aborda as fricções entre dignidade humana, autonomia individual e saúde pública num quadro em que os direitos fundamentais não são absolutos e exigem compatibilização. Examinam-se estratégias de desnormalização de comportamentos legais e os limites de mecanismos de nudging baseados em culpa, vergonha ou exclusão, bem como o direito do consumidor a informação objetiva sobre teores de nicotina e alcatrão. Debate-se a proporcionalidade na equiparação entre cigarros convencionais e eletrónicos, a legitimidade de restrições quando não há dano direto a terceiros e o equilíbrio entre harmonização europeia e diversidade jurídica dos Estados-membros, destacando instrumentos que travam derivas paternalistas e preservam escolhas conscientes.

HealthNews (HN) – Em que medida a estratégia de desnormalização de comportamentos legalmente permitidos, como o consumo de tabaco, colide com os princípios da dignidade humana e da autonomia individual, pilares do Estado de Direito democrático?

Diogo Feio (DF) – A discussão situa-se no terreno constitucional, em que é necessária a compatibilização de direitos fundamentais. Como ponto de partida deve-se notar que estes direitos não são absolutos. Têm de ser ajustados, como os referidos na sua questão, caso a caso. Aqui cruzam-se a dignidade da pessoa humana e a liberdade individual com a proteção da saúde pública. Os quadros constitucionais pedem ponderação dos contextos, da intensidade das medidas, da sua finalidade e dos impactos reais na esfera pessoal, preservando a autonomia sem descurar a saúde coletiva. A visão geral tem sempre de ter em atenção várias vertentes e não se pode entrincheirar numa só. 

HN – Salvaguardando ambos os direitos, sem pôr em causa nenhum deles?

DF – Nenhum destes direitos é ilimitado ou absoluto. A exigência é de adequação recíproca, evita soluções que valorizem em excesso um interesse e anulem o outro. A visão holística deve estar presente. Só assim é possível encontrar um equilíbrio estável numa sociedade de direitos e liberdades.


HN – Como avalia, do ponto de vista constitucional, a utilização de mecanismos de nudging que recorrem a sentimentos como culpa, vergonha ou exclusão social para influenciar comportamentos, ainda que sem os proibir diretamente?

DF – A informação deve assentar em dados objetivos: efeitos prováveis, riscos conhecidos, consequências verificadas. Passar para instrumentos que exploram culpa, vergonha ou ostracismo é, muitas vezes, problemático, podendo resvalar com facilidade para a discriminação e estigmatização. A intervenção deve concentrar-se na transparência e na inteligibilidade das mensagens, deixando a decisão consciente ao destinatário.


HN – A proibição de informar sobre teores de nicotina e alcatrão sob o argumento de que isso induz os consumidores em erro — quando esses dados são objetivamente relevantes — não constituirá uma violação do direito à informação e uma forma de paternalismo estatal agressivo?

DF – O direito à informação do consumidor implica acesso a dados materiais para a decisão. Teores de nicotina e alcatrão são parâmetros objetivos e relevantes para avaliar o risco relativo. Impedir o acesso a informação traduz seleção do que pode ser conhecido. A abordagem adequada é contextualizar os números — limites, variações de uso, diferenças entre exposição e dano — e não suprimi-los. Nesse plano, é desejável que exista coordenação legislativa entre Estados-membros para critérios comuns de rotulagem e comunicação, assegurando níveis de informação comparáveis.


HN – A equiparação legal entre cigarros tradicionais e cigarros eletrónicos — que não envolvem combustão — parece assentar mais num objetivo ideológico de abstinência do que numa base científica de redução de danos. Como comenta esta opção legislativa à luz do princípio da proporcionalidade?

DF – O princípio da proporcionalidade exige medidas necessárias, adequadas ao fim e equilibradas nos custos determinados. Deve também articular-se com a igualdade, na vertente de tratar por igual o que é igual e por diferente o que é diferente. Se produtos com perfis de risco distintos recebem o mesmo tratamento jurídico, pode haver desajuste. A regulação deve observar a evidência disponível, a forma de consumo, a exposição e os impactos em saúde pública, calibrando medidas em função desses elementos, evitando exageros e oscilações normativas.


HN – O conceito de saúde pública tem vindo a expandir-se para incluir estilos de vida e comportamentos individuais. Até que ponto pode o Estado, legitimamente, invocar a saúde pública para restringir liberdades fundamentais quando não há dano direto a terceiros?

DF – Quando a conduta não produz danos diretos a terceiros, a margem de intervenção deve estreitar-se. O centro é a decisão informada do próprio, com consciência de custos e benefícios. O Estado pode recolher e divulgar evidência, garantir qualidade de informação e promover campanhas de esclarecimento. Outra coisa é impor restrições que substituem a vontade individual em domínios de autorresponsabilidade. Importa preservar a liberdade de escolha, minimizar externalidades e concentrar a atuação pública na prevenção e na capacitação informativa.

HN – A Organização Mundial da Saúde e a União Europeia têm promovido políticas de controlo do tabaco que muitos consideram paternalistas. Como jurista com experiência europeia, como vê o equilíbrio entre a harmonização legislativa e o respeito pela diversidade cultural e jurídica dos Estados-membros?

DF – A harmonização reduz fricções no mercado interno, confere previsibilidade e dificulta o comércio ilícito. A transposição de diretivas tem impacto real no ordenamento interno. Por exemplo, a revisão europeia sobre tributação de produtos do tabaco é um exemplo de maior exigência regulatória. O legislador nacional deve acompanhar estes desenvolvimentos, preparando convergência, designadamente no alargamento a novos produtos, designadamente as bolsas de nicotina. De facto, um núcleo comum — informação, rastreabilidade, combate ao comércio ilícito — pode coexistir com ajustamentos pontuais e parcelares às realidades dos diferentes Estados.  Cumpre sublinhar que esses movimentos não podem, em circunstância alguma, colocar em causa os princípios basilares da necessária harmonização europeia 

HN – Juristas alertam para o risco de uma rampa deslizante em que a lógica do paternalismo se estenda a comportamentos como a alimentação ou o sedentarismo. Que mecanismos jurídicos e políticos podem travar esta expansão sem limites do Estado sobre a vida privada?

DF – Quanto a essa matéria existem dois travões: os limites normativos claros e a prudência na aplicação. A lei deve definir critérios de intervenção baseados em evidência, com testes explícitos de necessidade e adequação e avaliações de impacto que considerem alternativas e menos intrusivas. Politicamente, importa uma cultura de responsabilidade e liberdade de escolha, apoiada por informação acessível. O objetivo não pode ser apenas dirigir comportamentos, mas criar condições para decisões conscientes. A transparência regulatória, a avaliação periódica das medidas e as correções quando os efeitos são desproporcionados ajudam a evitar extremos.

HN – Porquê?

DF – Porque políticas equilibradas tendem a ser mais sustentáveis e a gerar maior adesão social. Entre regular tudo e nada regular, há espaço para prudência e correção de rumo, com regulação que respeite as pessoas sem abdicar do interesse público. Tudo é possível com bom senso e moderação.

Entrevista de Miguel Múrias Mauritti

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