Desnutrição infantil atinge níveis críticos em Gaza, segundo estudo da ONU

9 de Outubro 2025

Um estudo da ONU revela que mais de 54.600 crianças com menos de cinco anos em Gaza sofrem de desnutrição aguda. A situação, considerada a mais abrangente análise até à data, é agravada pelas restrições à entrada de ajuda alimentar e assistência médica

A sombra da fome alastra-se sobre a infância em Gaza. Um novo estudo da Agência das Nações Unidas de Socorro e Trabalho para os Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA) estima que mais de 54.600 crianças com menos de cinco anos padecem atualmente de desnutrição aguda no território. Deste número, que espelha uma crise humanitária de profundidade alarmante, mais de 12.800 encontram-se em estado grave, uma condição que eleva drasticamente o risco de mortalidade.

A investigação, que veio a público na edição de quarta-feira do prestigiado jornal The Lancet, baseou-se em rastreios realizados a quase 220.000 crianças, entre janeiro de 2024 e meados de agosto deste ano, em dezenas de centros de saúde de Gaza. Os autores descrevem-na como a análise mais exaustiva até hoje sobre a fome infantil na região. Enfermeiros devidamente treinados recorreram a fitas de medição da circunferência do braço, um método padrão para aferir o stress nutricional, e identificaram que, no início de agosto, cerca de 16% das crianças entre os 6 meses e os 5 anos sofriam de emagrecimento agudo, uma forma de desnutrição potencialmente letal. Quase 4% foram diagnosticadas com emagrecimento agudo severo.

“Dezenas de milhares de crianças em idade pré-escolar na Faixa de Gaza estão agora a sofrer de desnutrição aguda prevenível e enfrentam um aumento do risco de mortalidade”, afirmou Masako Horino, cientista principal do estudo, num comunicado que acompanha a divulgação dos dados. A condição detetada exige, regra geral, tratamento prolongado com alimentos terapêuticos especiais e, em muitos casos, requer mesmo o internamento hospitalar, um cenário complicado pela sobrecarga do sistema de saúde.

Num comentário crítico anexo ao estudo, um grupo de três especialistas independentes — Jessica Fanzo da Universidade de Columbia, Paul Wise da Universidade de Stanford e Zulfiqar Bhutta, das universidades Aga Khan, no Paquistão, e Hospital for Sick Children, no Canadá — classificou o trabalho como uma das “provas mais definitivas” da amplitude da desnutrição em Gaza. “Está agora bem estabelecido que as crianças de Gaza estão a morrer de fome e necessitam de assistência humanitária imediata e sustentada”, escreveram os académicos, que não estiveram envolvidos na investigação original.

Do outro lado do conflito, o Primeiro-Ministro israelita, Benjamin Netanyahu, reagiu aos persistentes alertas sobre fome. Num discurso que assinalou os dois anos do ataque de 07 de outubro de 2023 pelo Hamas, Netanyahu negou categoricamente estes relatos, descrevendo-os como “mentiras” promovidas pelo grupo militante. A sua posição contrasta frontalmente com os avisos, repetidos ao longo de meses, de peritos e organizações de ajuda humanitária. Estes sustentam que as restrições impostas por Israel à entrada de alimentos e assistência em Gaza, conjugadas com a ofensiva militar ininterrupta, estão na origem da catástrofe nutricional, que afeta de modo particular crianças e grávidas.

O Ministério da Saúde de Gaza, entidade que integra a administração liderada pelo Hamas, informou que 461 pessoas, das quais 157 eram crianças, morreram devido a complicações diretamente relacionadas com a desnutrição desde o início da guerra, sendo que a maioria destes óbitos ocorreu em 2025. A credibilidade dos números divulgados por este ministério é, no entanto, considerada a mais fiável pela ONU e por muitos especialistas independentes. Nos hospitais, o panorama é de desespero, com unidades de saúde a debaterem-se com uma afluência massiva de crianças desnutridas e uma carência severa dos alimentos terapêuticos essenciais para o seu tratamento.

O estudo da UNRWA traça ainda um paralelo claro entre o acesso à ajuda humanitária e o estado nutricional da população infantil. As taxas de desnutrição mostraram uma melhoria sensível durante os períodos em que a ajuda foi autorizada a entrar em Gaza, nomeadamente durante uma trégua de seis semanas no início de 2025. Contudo, a situação deteriorou-se de forma abrupta sempre que os fornecimentos foram bloqueados durante semanas ou mesmo meses. Israel impôs restrições à ajuda em vários patamares ao longo do conflito, tendo decretado um cerco total durante várias semanas a partir de março.

Em maio, foi iniciado um fluxo limitado de assistência, através de um polémico sistema de distribuição apoiado por Israel e pelos Estados Unidos. Este modelo, que limita a entrega de ajuda a apenas quatro locais em Gaza e obriga os palestinianos a atravessar linhas militares israelitas para a receber, tem sido palco de violência extrema. Dados das Nações Unidas indicam que mais de 1.000 palestinianos foram mortos pelas forças israelitas dentro e no perímetro desses mesmos locais de distribuição.

NR/HN/Lusa

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