Saúde Mental: O Custo da Inação e os Desafios da Prevenção

9 de Outubro 2025

Um relatório da OCDE revela que os problemas de saúde mental custam mais de 4% do PIB aos países membros, uma fatia superior à da diabetes, cancro ou doenças respiratórias. O documento defende uma mudança de paradigma, priorizando a promoção e a prevenção face aos modelos tradicionais centrados no tratamento.

A Carga Silenciosa

Um relatório da OCDE revela que os problemas de saúde mental custam mais de 4% do PIB aos países membros, uma fatia superior à da diabetes, cancro ou doenças respiratórias. O documento defende uma mudança de paradigma, priorizando a promoção e a prevenção face aos modelos tradicionais centrados no tratamento.

O peso económico dos transtornos mentais nas economias avançadas é de tal ordem avassalador que a sua simples quantificação obriga a repensar prioridades. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, estes custos ultrapassam, de longe, os 4% do Produto Interno Bruto, numa média que agrega despesas diretas com cuidados de saúde, custos indiretos ligados a prestações sociais e, de forma mais significativa, as perdas de produtividade associadas ao absentismo e ao presenteísmo – quando um trabalhador está presente no seu posto mas com uma capacidade de rendimento drasticamente reduzida. Esta equação, que transforma sofrimento individual em números secos, serve de preâmbulo ao relatório “Mental Health Promotion and Prevention: A Key Investment for the Future”, que funciona como um apelo a uma reação estratégica.

O documento, acessível através da plataforma oficial da OCDE, não se limita a diagnosticar um problema. Ele aponta uma falha sistémica na forma como as sociedades lidam com a questão. O foco, argumenta, permanece excessivamente ancorado no tratamento de condições já instaladas, um modelo reactivo que chega, frequentemente, tarde de mais. Stefano Scarpetta, Diretor de Emprego, Trabalho e Assuntos Sociais da OCDE, sublinhou que “os sistemas de saúde continuam largamente orientados para cuidados curativos, apesar de existirem evidências robustas sobre o que funciona na prevenção”. Esta constatação levanta questões incómodas sobre a alocação de recursos e a eficácia das políticas públicas.

A tese central do trabalho é a de que a promoção da saúde mental e a prevenção de doenças representam um investimento com um retorno tangível, não apenas em bem-estar, mas também em resiliência económica. A análise da OCDE percorre todo o ciclo de vida, identificando janelas de oportunidade críticas. A infância e a adolescência emergem como fases decisivas, onde intervenções em contextos escolares podem moldar trajetórias de vida. Programas focados no desenvolvimento de competências socioemocionais, na gestão de emoções e no combate ao bullying mostram-se capazes de reduzir a incidência futura de problemas como a ansiedade e a depressão. O local de trabalho é outro palco fundamental, um ambiente que tanto pode ser um agente de proteção como de desgaste psicológico. Aqui, o relatório menciona a necessidade de práticas de gestão que promovam um equilíbrio saudável entre a vida profissional e pessoal, assim como mecanismos que identifiquem e apoiem precocemente os colaboradores em risco.

A perspetiva da organização é, inescapavelmente, económica. O argumento é construído sobre a premissa de que é financeiramente mais inteligente impedir o afundar do que remediar as inundações. No entanto, esta racionalidade esbarra numa realidade complexa: os benefícios da prevenção são difusos e colhidos a longo prazo, muitas vezes fora do perímetro do orçamento da saúde, em áreas como a educação ou a segurança social. Isto cria um dilema de financiamento e de governação, um jogo de custos e benefícios onde ninguém quer, verdadeiramente, pagar a conta inicial. O relatório não oferece soluções milagrosas, mas antes um mapa de possibilidades, um conjunto de políticas testadas em diferentes países que parecem dar frutos. O tom é de urgência contida, o de um aviso sobre os custos da inação, que continuam a acumular-se silenciosamente, minando não só a saúde das populações, mas o próprio fundamento do progresso económico que a OCDE habitualmente mede e persegue.

O Labirinto da Prevenção

A narrativa da OCDE desloca-se depois do “porquê” para o “como”, mergulhando na complexidade operacional de implementar estratégias de prevenção. O caminho está pejado de obstáculos, sendo o estigma talvez o mais insidioso. Ainda que as conversas públicas sobre saúde mental se tenham multiplicado, o relatório assinala que o preconceito permanece uma barreira formidável à procura de ajuda, envenenando o poço da intervenção precoce. As pessoas hesitam em falar, os empregadores temem abordar o tema, e os sistemas, por vezes, refletem essa mesma ambiguidade na forma como os serviços são desenhados e disponibilizados.

Outro eixo de análise prende-se com as gritantes desigualdades no acesso a cuidados de base psicológica. O documento é claro ao afirmar que os grupos socioeconómicos mais desfavorecidos, as minorias e as populações migrantes enfrentam um risco desproporcionado de desenvolver problemas de saúde mental, ao mesmo tempo que dispõem de menos recursos para lhes fazer face. Esta dupla penalização não é apenas uma questão de equidade; é um factor que agrava o custo social global. A OCDE observa que fechar este fosso exige mais do que simplesmente aumentar o número de psicólogos ou psiquiatras. Implica uma integração profunda dos serviços de saúde mental nos cuidados de saúde primários, formando os médicos de família para detetar sinais de alerta e quebrando a compartimentação que tantas vezes deixa os doentes a navegar sozinhos num labirinto de portas fechadas.

Há, contudo, exemplos de países que tentam desbravar este caminho. O relatório cita, de passagem, experiências como a dos Países Baixos com os seus programas de acesso rápido a tratamentos psicológicos ou as iniciativas australianas de resiliência mental online. São faróis que mostram a viabilidade de uma abordagem diferente. Mas a mensagem subjacente é a de que não existe uma solução única. O que funciona numa cultura pode esbarrar noutra. A chave, insiste a análise, está na adaptação local, no financiamento sustentado e na recolha sistemática de dados para avaliar o que está, de facto, a produzir resultados.

O cálculo do retorno do investimento surge como um ponto crucial, quase uma arma retórica para convencer os ministérios das finanças. A OCDE apresenta estimativas que sugerem que, por cada euro aplicado em intervenções de prevenção em contextos específicos, como programas anti-bullying ou de apoio à parentalidade, os retornos podem variar entre dois a oito euros em benefícios sociais e económicos futuros. São números persuasivos, mas que carregam consigo uma certa frieza. Reduzem o valor intrínseco da saúde mental a uma planilha de custos, um mal necessário, talvez, para captar a atenção de um mundo obcecado por métricas. No fim, o relatório deixa uma impressão ambivalente: é um documento técnico excecionalmente bem fundamentado, um guia estratégico de valor inquestionável, mas é também um testemunho melancólico de uma era que ainda precisa de traduzir a angústia humana em linguagem de negócios para a levar a sério. A sua força reside precisamente nessa contradição, na ponte frágil que tenta construir entre o que é sentimento e o que é contabilidade, entre o bem-estar e o PIB.

Link para o documento: https://www.oecd.org/en/publications/mental-health-promotion-and-prevention_88bbe914-en.html

PR/HN

 

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