António de Sousa-Uva: Médico do Trabalho, Imunoalergologista e Professor Catedrático

Aptidão para o trabalho: a complexidade que se simplifica todos os dias

10/11/2025

A grande diferença de um exame médico de Medicina do Trabalho de um exame de qualquer outra especialidade é que esse exame deve ser sempre concluído com a emissão de uma ficha de aptidão para o trabalho.

A aptidão para o trabalho é um conceito, quase sempre, muito mal compreendido que tem sempre uma componente temporal e que, no essencial, define a capacidade de um trabalhador desempenhar um “determinado trabalho”. O conceito de aptidão (ability, na língua inglesa) para o trabalho está intrinsecamente associado à sua componente complementar (incapacidade, “disability” na língua inglesa) de desempenhar as funções profissionais, o que, por sua vez, se pode associar a outro conceito, o de deficiência (“impairment”). A avaliação é essencialmente sobre a adaptação da situação de saúde à situação de trabalho (na língua inglesa fitness) e, obviamente, pressupõe o conhecimento das condições (ou condicionantes) reais de trabalho. Por exemplo, a aptidão não deve ser dada para o trabalho de um pintor, mas para as exigências concretas do trabalho onde essa atividade de pintura é realizada.

Os conceitos de incapacidade, deficiência e inaptidão não são, pois, indistintos. Dito de outra forma, o conceito de inaptidão para o trabalho está intimamente associado à interdependência entre a deficiência (ou a incapacidade) e as exigências do trabalho, não sendo, portanto, possível deliberar nessa matéria sem conhecimento, o mais aprofundado possível, dessas duas realidades concretas.

Um trabalhador portador de uma deficiência (ou de uma incapacidade) pode, portanto, ser totalmente apto para o exercício de uma actividade profissional em que as exigências do trabalho não “interfiram” com a situação de saúde do trabalhador. A designação genérica de deficiência, isto é, a perda (ou anomalia) de uma estrutura anatómica, função fisiológica ou psicológica pode, portanto, não interferir com a actividade profissional de um indivíduo e, consequentemente, com a (in)aptidão.

Um exemplo dessa situação poderá ser a de um professor que, por exemplo, apresente uma paresia dos membros inferiores, o que, não interfere, decisivamente, com as exigências do trabalho mais decisivas. Se o mesmo trabalhador fosse eletricista de alta tensão, por exemplo, tal “deficiência” resultaria, por certo, numa incapacidade, isto é, numa limitação ou desvantagem (o que os ingleses denominam “handicap”).

 

A aptidão para o trabalho está, pois, associada, para além da avaliação da situação de saúde à capacidade de trabalho do trabalhador, à atividade profissional e às condições de trabalho concretas desse trabalhador que não podem, em qualquer caso, ser perspectivadas de uma forma generalista.

O médico do trabalho não deve, portanto, decidir sobre a aptidão para o trabalho apenas com base numa determinada situação de natureza médica, mas, sobretudo, basear a sua decisão na interpretação da interação dessa situação com as exigências concretas de trabalho, que a situação de trabalho determina e não  somente pela “profissão” do trabalhador. Claro que a profissão contribui muito para algumas exigências do trabalho, mas, nem de longe nem de perto, para a sua totalidade e, por isso, para a respetiva decisão.

A aptidão para o trabalho não é, portanto, uma decisão para “todo e qualquer trabalho”, mas sempre uma decisão, num determinado momento, sobre a compatibilidade entre a situação de saúde do trabalhador, nesse mesmo momento, e as exigências do trabalho que efetivamente executa (“trabalho real”). Numa grande empresa em que trabalhei, alguém da estrutura primária achava, e pretendeu advertir-me que a aptidão seria para trabalhar naquela empresa(?). Para quem, diariamente, emite fichas de aptidão não será fácil essa função.

Figurativamente, é frequente recorrer-se, no contexto da aptidão para o trabalho, à imagem de uma chave e de uma fechadura “compatíveis” ou de uma balança em que os seus dois “braços” estão equilibrados. Tal enquadramento é totalmente diferente da perspetiva muito frequente de que o médico do trabalho avalia a situação de saúde sem ter em conta as exigências do trabalho, atestando a robustez física e mental através, entre outros, de uma avaliação clínica e de meios complementares analíticos, de imagem e/ou de função que nada têm a ver com as situações concretas de trabalho. Tem sido por mim usado, de forma caricatural, a imagem de uma atuação de “carimbar” o ovo (ou outro alimento) para consumo.

Não! A aptidão deve ser feita à medida (na língua inglesa, taylor made) e, portanto, a situação de saúde que uma doença determina (e não a doença propriamente) pode corresponder à aptidão para um determinado trabalho ou à inaptidão para outro trabalho concreto. Sem compreender isso dificilmente se entenderá, para além da prevenção dos riscos profissionais, para que serve a vigilância médica (ou vigilância de saúde) em Medicina do Trabalho. E esse é, recorde-se, um aspeto essencial do seu “core business“.

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