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Edvard Munch, “A Morte na Doença” (1895). A vulnerabilidade partilhada como lugar ético do cuidado.
Há imagens que condensam o indizível, no quadro A Morte na Doença, Edvard Munch (1895), pinta uma cena silenciosa, um corpo abatido, um leito, o olhar atento dos que esperam — talvez na impotência, talvez na oração. Não há heroísmo nem dramatismo, apenas o instante em que a vida se reconhece finita, e, nesse reconhecimento, nasce o cuidado. Celebrar o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos é celebrar essa lucidez, a de uma medicina que não desiste do humano quando a cura já não é possível.
Em tempos, em que o algoritmo promete prever o imprevisível e a técnica tenta dominar o corpo até ao último suspiro, os cuidados paliativos recordam-nos que a verdadeira ética médica nasce do encontro, não do controlo. Cuidar não é apenas aliviar sintomas, é restaurar o sentido quando o tempo escasseia, é devolver ao doente o direito de continuar a ser sujeito, mesmo na vulnerabilidade, é compreender que a dignidade não é atributo de quem vence, mas de quem é reconhecido.
A medicina que escuta
Os paliativos são, antes de mais, uma pedagogia da escuta, escutar o outro é, em si, um ato ético e exige suspender o próprio poder e reconhecer que o sofrimento não se mede, apenas se acompanha. Na escuta autêntica, o médico abdica da ilusão de domínio e torna-se presença, e é nesse lugar, discreto, silencioso, profundamente humano, que a medicina reencontra a sua vocação primeira, cuidar do que permanece, quando o que falta já não pode ser recuperado. Escutar é também permitir que o doente diga a sua história, não a que está no processo clínico, mas a que se escreve entre as linhas da dor e do medo. Cada história é um ato de resistência contra a despersonalização, como lembrava Paul Ricoeur, somos seres narrativos, deixamos de existir quando deixamos de contar e de ser contados.
A dignidade como relação
Nos cuidados paliativos, a dignidade é relacional, não reside no corpo intacto, mas no olhar que reconhece o outro como portador de valor, mesmo quando tudo o resto se desfaz. A ética paliativa é, por isso, uma ética do encontro, onde a vulnerabilidade do doente se espelha na vulnerabilidade do médico. É nesse espelho que ambos se tornam humanos. Contra a cultura da eficiência, os paliativos recordam-nos a urgência da presença inútil, aquela que não serve para curar, mas para estar, e essa presença é tudo, é o gesto que transforma a solidão em companhia, o desespero em sentido, a morte em reconciliação.
Uma medicina contra a indiferença
Vivemos tempos paradoxais. Quanto mais cresce o poder tecnológico da medicina, mais frágeis se tornam os seus fundamentos éticos.
Num mundo que mede a vida em dados, é fácil esquecer que a existência é mais do que uma variável, os cuidados paliativos resistem a essa despersonalização, lembram-nos que a medicina é uma prática moral antes de ser uma ciência aplicada.
Ser médico, no horizonte paliativo, é aprender a suportar o limite.
Não há algoritmo que ensine a permanecer junto ao leito de quem morre, nem inteligência artificial que substitua o gesto de segurar uma mão.
Essa é a fronteira onde a bioética se torna cidadania, porque cuidar de quem sofre é também cuidar da sociedade que queremos ser.
A cidadania do cuidado
Os cuidados paliativos não dizem respeito apenas aos doentes em fim de vida, mas a todos nós enquanto comunidade, a forma como cuidamos dos mais frágeis revela o grau de humanidade da nossa civilização. Uma sociedade que valoriza a autonomia, mas esquece a compaixão, que financia a inovação, mas negligencia a escuta, é uma sociedade tecnicamente avançada, mas moralmente empobrecida.
Reafirmar os cuidados paliativos como direito humano é, por isso, um gesto político,
não se trata apenas de garantir acesso, mas de reconhecer que o cuidado é um bem público, um património ético que nos define enquanto cidadãos.
Entre o sofrimento e o sentido
Os paliativos situam-se onde a dor encontra o sentido. Não eliminam o sofrimento, mas resinificam-no. Quando acompanhamos alguém até ao fim, percebemos que a morte não é apenas um evento biológico, é também uma passagem relacional, espiritual, simbólica. Nesse limiar, a ética torna-se carne: a presença é gesto, a palavra é abrigo, o silêncio é linguagem. Como escreveu Munch, “a doença, a loucura e a morte foram os anjos que mais me ensinaram.” Talvez seja essa a lição dos cuidados paliativos: ensinar-nos a olhar o sofrimento não como falha, mas como oportunidade de humanidade.
Num mundo que idolatra o sucesso, eles recordam-nos o valor da ternura. E lembram-nos que a dignidade não se perde com a morte — apenas se transforma em memória.


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