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No âmbito do Outubro Rosa, a médica Diana Melo Castro, especialista em Ginecologia e Obstetrícia, alerta para a importância crítica de integrar a preservação da fertilidade no plano terapêutico de mulheres jovens com cancro da mama. Em entrevista exclusiva ao HealthNews, a especialista explica como é possível conciliar a urgência do tratamento oncológico com técnicas como a criopreservação, sem atrasos significativos, sublinhando que “proteger a fertilidade é, acima de tudo, proteger a esperança”
HealthNews (HN) – Este mês assinala-se o Outubro Rosa, que alerta para o aumento de diagnósticos de cancro da mama em mulheres jovens. No momento do diagnóstico, como é que as doentes e as equipas médicas podem garantir que a questão da fertilidade futura não é negligenciada face à urgência do tratamento oncológico?
Diana Melo Castro (DMC) – No mês em que se assinala o “Outubro Rosa”, é de enorme importância abordarmos o tema da preservação da fertilidade após o diagnóstico de uma doença oncológica, já que o cancro da mama tem sido diagnosticado cada vez com mais frequência em mulheres em idade fértil.
Embora o foco imediato seja muitas vezes o controlo da doença, a fertilidade futura não pode ser negligenciada e deve ser um tópico obrigatório no plano inicial, já que os tratamentos oncológicos podem comprometer a função ovárica. Aliás, as diretrizes internacionais, como as da ASCO (American Society of Clinical Oncology), recomendam que todas as pacientes em idade fértil sejam informadas sobre o risco de infertilidade e das opções disponíveis de preservação, antes de iniciar o tratamento da doença.
Deste modo, as doentes devem ser referenciadas rapidamente para a consulta de medicina da reprodução. Isto permite uma avaliação individualizada e, se a paciente o desejar, o início célere de processos de preservação.
É também crucial que os profissionais de saúde abordem o tema da fertilidade com clareza, empatia e sem assumir preferências da paciente. Muitas mulheres jovens ainda não consideraram a maternidade, mas podem desejar manter essa possibilidade no futuro.
É, portanto, essencial adotar uma abordagem multidisciplinar, proativa e centrada na paciente, onde a preservação da fertilidade seja considerada uma parte integrante do plano de tratamento oncológico desde o início. A comunicação clara, o encaminhamento rápido e a sensibilização das equipas de saúde são chaves para garantir que as doentes tenham todas as opções à sua disposição.
HN – De que forma é que tratamentos como a quimioterapia ou a radioterapia podem comprometer a fertilidade de uma mulher jovem, e por que razão é tão crítico abordar esta questão antes de se iniciar qualquer terapia?
DMC – A quimioterapia e a radioterapia, embora muitas vezes essenciais no tratamento oncológico, podem ter efeitos adversos significativos sobre a fertilidade, especialmente em mulheres jovens. Abordar esta questão antes de iniciar qualquer terapia é fundamental, porque as opções de preservação da fertilidade são, na sua maioria, apenas viáveis antes do início deste tipo de tratamento.
A quimioterapia pode ter um efeito tóxico para os ovários, originando a destruição dos folículos ováricos, reduzindo desta forma a reserva ovárica e podendo induzir uma falência ovárica prematura. Claro que todos estes efeitos vão depender da idade da paciente, tipo de quimioterapia e dose total administrada.
Por sua vez, a radioterapia pode originar lesão direta do tecido ovárico. As radiações da região cerebral podem afetar a regulação hormonal da ovulação e da função ovárica. Sabemos que mesmo baixas doses podem ser prejudiciais, se forem contínuas ou combinadas com quimioterapia.
Assim, a abordagem da fertilidade antes de iniciar este tipo de tratamento é crucial, já que a criopreservação de ovócitos e embriões só pode ser feita antes da quimioterapia ou radioterapia, pois o tratamento pode comprometer a qualidade dos óvulos. Além disso, permite que a mulher tenha opções reais no futuro, mesmo que a função ovárica não regresse após o tratamento e evita, assim, arrependimentos futuros.
HN – A criopreservação de óvulos ou embriões é frequentemente vista como um processo demorado. Perante a necessidade de iniciar rapidamente o tratamento oncológico, como é que é possível integrar de forma prática e célere estas técnicas de preservação da fertilidade no plano terapêutico?
DMC – É verdade que a criopreservação de óvulos ou embriões era tradicionalmente vista como um processo moroso, mas avanços nos protocolos de estimulação ovárica e uma melhor integração entre oncologia e medicina reprodutiva tornaram possível realizá-la de forma rápida e segura, sem comprometer o início atempado do tratamento oncológico.
A eficiência na comunicação entre oncologista e especialista em medicina da reprodução é crucial. Idealmente, deve haver encaminhamento imediato após o diagnóstico, e as unidades de reprodução devem dar prioridade a estes casos oncológicos.
Há protocolos em que é possível iniciar a estimulação ovárica em qualquer fase do ciclo e o processo completo (estimulação + recolha dos óvulos) pode demorar apenas 10 a 14 dias. Isto significa que a criopreservação pode ser feita sem atrasar significativamente o início da quimioterapia. Além disso, o oncologista pode agendar o início da quimioterapia logo após a conclusão da criopreservação, de forma programada.
A preservação da fertilidade não precisa de atrasar o tratamento oncológico quando é rapidamente reconhecida como prioridade e integrada de forma coordenada. Com os protocolos atuais, é possível realizar a criopreservação de óvulos ou de embriões de forma eficaz, segura e rápida, garantindo que a urgência de tratar a doença oncológica não comprometa o futuro reprodutivo da doente.
HN – Qual é, na sua experiência, o papel de uma equipa multidisciplinar – que inclui oncologistas, ginecologistas e especialistas em medicina da reprodução – na otimização dos resultados reprodutivos futuros destas doentes?
DMC – Na prática clínica, o papel de uma equipa multidisciplinar é absolutamente fundamental para otimizar os resultados reprodutivos futuros das mulheres jovens diagnosticadas com uma doença oncológica. A fertilidade não é apenas uma questão médica, é também uma questão emocional, ética e de qualidade de vida a longo prazo. Por isso, uma abordagem integrada, que envolva diferentes especialidades desde o início, permite decisões mais informadas, céleres e centradas na paciente.
O oncologista avalia a urgência do tratamento e o grau de toxicidade para o ovário esperado com a quimioterapia, determina qual a margem de tempo segura para a realização de técnicas de preservação da fertilidade e faz o encaminhamento imediato para a medicina da reprodução.
O ginecologista e especialista em medicina da reprodução avalia a reserva ovárica da doente e, posteriormente, faz a orientação do tratamento de preservação de fertilidade mais adequado para o tempo disponível.
É também muito importante o papel do psicólogo neste tipo de situações, já que irá apoiar a paciente no processo de tomada de decisão, que pode ser emocionalmente complexo, além de ajudar a lidar com o impacto do diagnóstico, medo de infertilidade e ansiedade sobre o futuro.
Uma equipa multidisciplinar atua como uma rede integrada de cuidados, assegurando que o tratamento oncológico não exclui, nem negligencia o desejo de maternidade futura. Esta colaboração eficaz entre especialidades permite preservar não apenas a vida, mas também o projeto de vida das mulheres jovens com cancro da mama.
HN – Para muitas sobreviventes de cancro, a impossibilidade de ter filhos biológicos é uma segunda batalha difícil. Na sua opinião, porque deve a criopreservação ser encarada como uma parte integrante e não opcional do percurso de tratamento de uma doente oncológica em idade fértil?
DMC – Frequentemente, negligencia-se a possibilidade de constituir família no futuro, e para muitos a notícia de que venceram o cancro é seguida pela descoberta dolorosa de que perderam a capacidade de ter filhos biológicos. Esta é uma segunda batalha, carregada de um luto profundo e silencioso. É uma consequência que pode e deve ser mitigada sempre que possível, pelo que a criopreservação deve ser uma peça fundamental e não opcional do plano terapêutico.
A quimioterapia, a radioterapia e algumas cirurgias podem causar infertilidade irreversível, o que transforma o desejo de maternidade num desafio emocional profundo. Ao integrar a criopreservação no plano terapêutico, garante-se que a doente tenha tempo para refletir, seja informada dos riscos e das soluções e possa decidir de forma livre e consciente.
Além disso, a inclusão sistemática da criopreservação no plano terapêutico reflete uma abordagem verdadeiramente multidimensional do tratamento oncológico, que não se limita à sobrevivência, mas também valoriza o bem-estar, os projetos de vida e a reabilitação global da doente.
Num tempo em que a medicina permite aumentar as taxas de sobrevivência, precisamos garantir que a vitória contra o cancro não venha acompanhada de uma derrota silenciosa na vida reprodutiva. A criopreservação deve ser integrada de forma sistemática no plano terapêutico do doente oncológico em idade fértil, já que oferece uma oportunidade real de preservar o potencial biológico da maternidade, garantindo esperança e autonomia reprodutiva no futuro. Esta abordagem deve assentar na informação sistemática e no acesso atempado, já que a criopreservação não pode comprometer o início do tratamento oncológico.
Proteger a fertilidade é, acima de tudo, proteger a esperança!
HN/MMM



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