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“À voz mais que à verdade erguem os vultos
E assim assentam sua opinião
Antes que a arte ou razão os faça cultos”
Dante a Divina comédia canto XXVI, 120
Fará uma década que a apelidada “violência obstétrica” foi trazida à baila e parecia ter morrido na praia, na sequência dos pareceres das Ordens dos Médicos e dos Advogados (1,2). Mas não! A falácia até teve direito a legislação: a Lei 33/2025.
O peso das palavras
Quando falares, cuida que as tuas palavras sejam melhores que o silêncio
Provérbio hindu
Comecemos pela escolha do qualificativo “violência”, com que, curiosamente, nenhuma outra especialidade médica é brindada. O termo “violência” indicia dolo, intenção em causar dano, o que, convenhamos, é uma acusação particularmente grave e está a ser usada, no mínimo, de forma leviana, se não caluniosa. Mas há mais: atribuir à OMS a paternidade desta designação é grave. Existe, isso sim, um documento denominado “Prevenção e eliminação abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde” (3), cuja leitura apressada terá gerado este deplorável equívoco. É que ao listar os tais abusos e maus tratos no documento em causa não se encontra a expressão “violência obstétrica”. Especifica, entre outros, uso de procedimentos sem consentimento, denegação de cuidado e violência explícita (sem menção ao qualificativo obstétrica) sobre grávidas e parturientes. Como não consegui encontrar alusão a “violência obstétrica” no portal da OMS, aqui ficam o desafio e consequente promessa de me redimir, caso alguém prove que estou equivocado ao negar à OMS a autoria da terminologia “violência obstétrica”.
Como sublinhou o colégio da OM (1), a leitura deste documento mostrará que foi escrito a pensar noutros contextos geográficos, submetidos à pobreza e onde o desrespeito generalizado pelos Direitos Humanos é regra.
O certo é que os legisladores optaram por avaliar superficialmente os argumentos das Ordens dos profissionais chamadas a expor as suas visões e preferiram adotar as narrativas das ativistas consagrando uma terminologia indefensável, se não mesmo injuriosa. Parece, portanto, que os legisladores perfilharam um paradigma arredado não só do conhecimento científico, como também do direito.
O peso da Lei
Cada mocho em seu souto
Anexim popular
O termo “violência obstétrica”, apesar de adotado de forma espúria como vimos, foi consagrado na redação do artigo 2 da referida Lei. Contudo a sua definição é um tanto vaga, por exemplo, ao referir “(…) abuso de medicalização”. Sendo esta preocupação legítima, pena é que tenha primado pela ausência no rol das tais “violências” a omissão de procedimentos considerados boas práticas (1), refletindo uma assimetria bizarra dos desideratos regulamentadores dos legisladores. Inquieta-os o excesso de procedimentos, mas não a sua falha, ignorando as preocupações da própria OMS. Mais inquietante é transparecer no articulado um equívoco conceptual crasso quando cita “(…) patologização dos processos naturais”. Ignoremos o emaranhado semântico em que o termo “natural” nos possa enredar e passemos ao erro mais concreto. Ao adotar um argumento muito do agrado das ativistas (4), o legislador olvida o óbvio: o facto do parto ser um “processo natural” não exclui a sua potencial perigosidade. Ou seja, o processo fisiológico pode evoluir para patológico, de forma inesperada e catastrófica. A fundamentação da lei faz tábua rasa dos gigantescos ganhos que a obstetrícia proporcionou em termos de vidas e saúde das mulheres e bebés, desde que passou a interferir no tal “processo natural” (1).
Continuando: seria de esperar ver elencados na lei os tais procedimentos violentos. Contudo, em concreto, só explana a episiotomia de rotina (artigo 8º), prática abandonada (há décadas) nos serviços de obstetrícia em Portugal (5). Tiro na água! Mesmo que se substituísse o absurdo por redação mais adequada – “recurso excessivo a episiotomia” -, diluir-se-ia indesejavelmente a definição do ato a criminalizar. Quem decide quando é excessiva a episiotomia? Os legisladores? Os juízes chamados a julgar os acusados do “crime”? Mas há mais: criminalizou-se a episiotomia de rotina (seja lá o que o legislador por tal entenda), mas quando da omissão da episiotomia resultar uma rasgadura do períneo do 4º grau, que prescreve a lei? Já não é “violência”, nem “crime”? Parece que não. Mas não se estará a fragilizar a putativa vítima de omissão de episiotomia, no caso de laceração perineal durante o parto, à mingua duma episiotomia oportuna? Conclui-se que para o legislador o risco está na atuação dos profissionais e não na sua inação.
Onde está então a enumeração das outras “violências” a reprimir? Quedamo-nos pela defunta episiotomia de rotina? E a cesariana, por exemplo? Pelo menos até recentemente era consensual a sua frequência em Portugal estar acima da média de outros países europeus (6). Não será também violência, quando executada sem indicação? Porque não mereceu a atenção dos legisladores? nomeadamente a disparidade com que a ela recorrem instituições privadas ou o SNS?
Em próximo artigo cogitaremos sobre o cadinho ideológico em que fermentou esta tendência.
- https://ordemdosmedicos.pt/files/pdfs/KBrk-Parecer-Projeto-Lei-912XIV-2-2.pdf
- parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados datado de 2021/09/02
- https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf
- Simões, Vânia Alexandra 2016 A violência obstétrica: violência institucionalizada contra o género, Lisboa, 2016.
- Nota sobre a Resolução da Assembleia da República (nº 181/2021) sobre violência obstétrica
- https://observador.pt/2025/05/05/proporcao-de-cesarianas-aumentou-no-sns-em-2024-portugal-e-dos-paises-europeus-com-mais-partos-deste-tipo/


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